Victoria, em análise

Num só plano sequência, Victoria transporta as suas audiências para as ruas de Berlim numa aventura noturna centrada numa jovem espanhola e um grupo de misteriosos criminosos.

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Uma boa maneira de fazer certos cinéfilos palpitar de adoração é o uso de vistosos planos sequência, em que a câmara voa pelo espaço e o realizador evita o uso da montagem. Basta vermos admiração que Birdman recebeu ao se propor como um filme apresentado como um mirabolante plano sequência sem um único corte. Na verdade o plano do filme de Iñarritu não era realmente um só take, mas o efeito é o mesmo quando vemos o filme, o que nos leva a pensar um pouco sobre o propósito de tais técnicas. Será que o uso do plano sequência é somente uma mostra de vácuo primor técnico e vistosa virtuosidade formalista, ou há mais alguma coisa por detrás desse mecanismo?

Uma das ferramentas principais do cinema é o tempo, o que normalmente se traduz tanto nos ritmos da cena, dos atores, do texto como da montagem. Quando temos um plano sequência, o tempo é estendido, sendo que, de certo modo, é como se a pausa entre planos fosse um suster de respiração. Alfred Hitchcock defendia o plano sequência como uma forma de promover tensão, ao criar expetativa de algo que está prestes a acontecer, ao prender a audiência numa perspetiva só e a privar de qualquer alternativa. Algo que se pode apontar como certeza é que usar um plano sequência, especialmente um cheio de movimento e de longa duração, é um artifício cinematográfico bastante vistoso e chamativo. Afinal, face a tal feito é impossível não pensar ou imaginar a presença da câmara.

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Todo este discurso sobre planos sequência serve de introdução a Victoria, um filme que nos mostra um desses milagres de um só take que, na história do cinema moderno, poderá ser apenas rivalizado por Aleksandr Sokurov em A Arca Russa. Se na sua obra-prima histórica, o realizador russo usou o artifício descarado do plano sequência para criar uma visão sonhadora e temporalmente fluida da história do Hermitage e da identidade cultural russa, em Victoria, cujo alucinante plano tem mais de duas horas, o artifício é um veículo para algo bastante mais inesperado, o naturalismo cinematográfico.

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Quer dizer, naturalismo, suspense e tensão, pois, na tradição Hitchcockiana, o realizador Sebastian Schipper empregou o take singular e sem cortes a uma narrativa que é um inequívoco thriller criminal. A técnica é soberba e merece ser admirada e venerada, especialmente quando vemos quão belos alguns dos enquadramentos conseguem ser, mas é fulcral recordar como toda construção estética está concebida em função de uma experiência cinematográfica imersiva que é completamente centrada na perspetiva da protagonista titular, Victoria. Ela é uma jovem espanhola, que vive em Berlim há três meses, e que se encontra sozinha num clube noturno quando encontra o charmoso Sonne e viaja pela noite berlinense na sua companhia e de seus amigos, acabando por se ver envolvida num esquema criminoso que culmina num violento assalto e seu rescaldo.

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A tensão vai aumentando num crescendo que parece emular uma corda a ser torcida e retorcida, e tudo é apoiado numa prestação miraculosa da atriz Laia Costa. Ela constrói na personagem de Victoria um retrato de uma estrangeira numa terra estranha, de uma jovem solitária e sedenta por companhia, contacto humano e essa efémera sensação de pertencer a algo. Inebriada por álcool e febril adrenalina, ela vai-se perdendo no fulgor da sua aventura urbana, até que os reais horrores e consequências das suas escolhas iniciais se começam a sentir. Quando ela e a audiência dão por si, estamos todos presos numa espiral que apenas pode culminar em desgraça.

Esse ritmo não é constante e invariável, sendo que perderia intensidade sem variações tonais. Na verdade, os cineastas de Victoria, relembrando o triunfo de Mad Max: Estrada da Fúria, pontuam o seu filme com momentos de melancólica serenidade, como uma belíssima cena em que Victoria toca piano para exausto deleite dos seus companheiros. Essa serenidade torna a violência ainda mais fraturante, e concede ao filme uma atmosfera vivida e singular, sendo que quase sentimos o cheiro da matina na cidade, e ouvimos o silêncio de Berlim antes dos primeiros raios de sol romperem pelo céu.

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Para além de Costa e da equipa técnica fabulosa, Victoria deve muito do seu sucesso ao seu restante elenco. Afinal, este registo de naturalismo seria impossível sem o seu empenho, relaxada competência e colossal primor coreografado. Frederick Lau como Sonne é especialmente fabuloso, mostrando as várias facetas e camadas de mentira e atração da sua personagem sem trair o registo singular do filme. Nunca deixa de ser charmoso ou alguém com quem é fácil simpatizar, mas Sonne é também o inegável lobo mau para o capuchinho vermelho que é a jovem espanhola.

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Uma crítica que se poderia realmente fazer a Victoria é que a sua narrativa é muito previsível, quase parecendo ser uma mera desculpa para a criação de um exercício técnico de frenética intensidade. Mas essa previsibilidade não é de particular importância quando o filme é uma experiência com uma qualidade tão imersiva como realmente acontece com o objeto final. Apesar de ser verdade que prever a conclusão de Victoria é bastante fácil, também é verdade que, graças à tensão emocional e o trabalho dos dois atores principais, o final é uma experiência de avassaladora melancolia e fantástico arrebatamento catártico.

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O MELHOR: A espetacularidade do trabalho de câmara de Sturla Brandth Grøvlen é inegável e merece toda a celebração crítica que tem recebido desde que o filme passou pela Berlinale há mais de um ano.

O PIOR: Como já foi mencionado, a previsibilidade e relativa falta de originalidade no argumento de Victoria não é particularmente prejudicial à experiência do filme, mas não deixa de ser uma pequena fragilidade.


 

Título Original: Victoria
Realizador:  Sebastian Schipper
Elenco: Laia Costa, Frederick Lau, Franz Rogowski
Midas Filmes | Crime, Drama, Thriller | 2015 | 138 min

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CA

 

2 thoughts on “Victoria, em análise

  • Tenho de discordar quando declara a previsibilidade do argumento. Creio que essa previsibilidade possa talvez ser explicada pelo visionamento do trailer, que, na minha humilde opinião, tira grande parte da autenticidade da experiência cinematográfica que é este filme.
    Felizmente quando o vi, não ousei ver o trailer. Aliás, pouco sabia sobre o filme. Sabia somente que era gravado num só take e que estava a ser comparado ao “Run, Lola, Run”.
    Acho que o espectador irá ter uma experiência muito mais autêntica se embarcar nesta montanha russa de emoções sem saber a cor dos carris ou o número de loops que o esperam.
    Ou seja, não vejam o trailer nem leiam esta crítica, limitem-se a ver o filme. Leiam a crítica depois.

    Cumprimentos e bom trabalho

  • Antes de mais, agradecemos o feedback, especialmente quando é um comentário construtivo e ponderado como este.

    A previsibilidade que é referida na análise é certamente uma avaliação fortemente subjetiva. Curiosamente não devém de visionamento do trailer, sendo que apenas tinha conhecimento prévio que o filme era um thriller e que tinha sido filmado nesse célebre plano com mais de duas horas de duração. No entanto, aquando do visionamento do filme, a conclusão e desdobrar do enredo revelou-se bastante fácil de prever. A razão para tal deverá estar mais preso a habituais convenções do género do thriller criminal e à proposta que o filme faz de ser um evento de uma singular noite passado em tempo real, e por isso com possibilidades de finalidade e estrutura bastante limitadas.

    É certo que esta previsibilidade irá variar de espetador para espetador, mas concordo fortemente com a sugestão que este é um filme para ser visto com o mínimo de informação possível. Mais do que uma obra apoiada num enredo forte é uma experiência fortemente imersiva, um espetáculo sensorial que merece ser visto sem preconceitos provocados por demasiados dados em relação á natureza do filme.

    De novo, agradecemos o feedback. Obrigado.

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