"Volta Para Mim" | © Big Picture Films

Volta Para Mim – Análise

Conhecido como “Bring Her Back” no inglês original, o novo filme da dupla RackaRacka é um pesadelo sem estribeiras, tão tortuoso que arrisca ser insuportável. Sally Hawkins encabeça o elenco de “Volta Para Mim,” revelando ter tudo o que é preciso para se tornar numa verdadeira rainha do terror.

Muito se fala nas redes sociais sobre se YouTubers deveriam poder considerar-se cineastas ou não. No caso de Danny e Michael Philippou, mais conhecidos como RackaRacka, esta questão é meio tonta. Afinal, com “Fala Comigo” de 2022, a dupla australiana saltou das redes sociais e sites de vídeos para o grande ecrã e consagrou-se como nova potência no mundo do cinema de terror.

Cruel e sofrida, essa metáfora para o abuso de drogas virada caixinha de horrores deliciou os fãs do género, pondo os irmãos no mapa assim como a sua atriz principal Sophie Wilde. Dito isso, tratava-se de uma obra claramente feita por artistas em início de carreira.

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Há muita imaturidade em cena e não me refiro só às atitudes das personagens adolescentes. O gosto pelo susto instantâneo é tão grande como o cuidado na apresentação da carne mortificada e a misantropia fundamental da história transcende os limites do bom gosto. Acima de tudo, “Fala Comigo” é um esforço juvenil com pouco a dizer que não seja o cliché habitual sobre o trauma e perda metastizados num cancro de violência sobrenatural. Para sua segunda longa-metragem, o RackaRacka subiu o nível de ambição e, se os resultados são menos consistentes, são também mais interessantes e dignos de reflexão.

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Do YouTube para o cânone do terror moderno.

volta para mim critica
© Big Picture Films

Volta Para Mim” debruça-se sobre muitos dos mesmos temas, começando no rescaldo de uma descoberta macabra. Andy encontra o pai morto no chuveiro e, como tem só dezassete anos, tanto ele como a irmã, Piper, são postos no sistema onde irão ficar até que se torne adulto e possa assumir custódia da menina.

A cegueira dela só dificulta a situação, mas os dois lá arranjam guarida na casa de Laura, uma mãe de acolhimento que já tem outra criança aos seus cuidados. Esse jovem, chamado Oliver, é bastante estranho, recusando-se a falar apesar de repentinas mostras de violência, tanto para consigo mesmo como para Laura ou o gato da família.

Debaixo dos céus cinzentos da Austrália invernal, este lar vai revelando sua vileza. É algo maligno que emana tanto do rapaz saturnino como dos sorrisos falsos sempre rasgados no rosto de Laura. Longe de esconder as intenções vis dessa mulher, a câmara está sempre ao seu lado enquanto ela planeia o declínio mental de Andy, excisando a confiança deste com Piper para assim se apoderar da rapariga.

O objetivo não é claro, mas tem algo que ver com imagens ritualistas que ela estuda através de uma cassete antiga. Também Oliver estará envolvido, seu corpo sujeito à possessão demoníaca de alguma entidade com quem Laura quererá travar um acordo.


Não vou revelar as particularidades do esquema, mas fica a ideia de algo complicado demais para o que, no final, se assume enquanto reinvenção do “hagsploitation” para o novo milénio. Por muito que Oliver esteja no centro da imagética grotesca, Laura é o suprassumo monstro de “Volta Para Mim,” distorcida pela perda de uma filha até que a alma é um buraco negro capaz de engolir o mundo nas profundezas do seu luto.

Há uma fome às portas da voracidade nos olhos de uma mulher cujos desvarios a colocam na mesma linhagem filicida de Medeia. Só que RackaRacka troca as motivações vingativas da heroína de Eurípides por uma versão obscena de expiação maternal.

Sally Hawkins segue-lhes o exemplo, nunca abordando o papel de Laura como alguém que se regozija na maldade dos seus atos. Longe disso, ela surge-nos como uma matriarca excêntrica e sempre ciente dos horrores por sua mão causados, imunizada contra a culpa graças à importância do seu objetivo.

Que estas verdades se sentem na pele apesar das pontadas de humor negro é prova suprema da habilidade desta atriz, sempre segura no comando das plasticidades tonais da peça e suas psicologias perversas. Ela é a âncora que tudo segura e sem ela, “Volta Para Mim” provavelmente teria colapsado sob o peso da sua obscenidade.

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Entenda-se que este é um filme extremamente cruel, predisposto a negar qualquer moralidade em nome das visões mais asquerosas que se possam imaginar. Há fluidos em todos os cantos da narrativa, desde saliva a urina, sons que nunca conseguirei esquecer, mil variações de putrefação. Andy é massacrado como pouca gente nos anais do terror e Oliver aparece-nos em preparos que fariam corar os mestres do extremismo francês das décadas passadas. Atrevo-me a dizer que nada é demasiado extremo para os RackaRacka e até tenho medo de pensar no que a dupla fará às personagens do seu próximo projeto.

Por agora, temos aqui uma trama tão empenhada em chocar que acaba por cair na incoerência, no lúgubre gratuito, no profano. O melhor, além de Hawkins, será mesmo a evolução nas linguagens audiovisuais dos realizadores que continuam a bater na mesma tecla temática ao mesmo tempo que expandem o seu repertório formal. Pensem na qualidade haptica da mise-en-scène, sua obsessão com a materialidade de um idílio suburbano deixado degradar até que toda a superfície parece ter manchas de humidade, matizes de sangue seco e excrementos, rachas e outros palimpsestos de podridão. Isso verifica-se na cenografia, nos figurinos, na maquilhagem digna de Óscar e até mesmo no gesto.

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Diria mesmo que o meu momento favorito da fita é daqueles mais corriqueiros. Acontece quando Laura tenta afugentar uma profissional dos serviços sociais, chegando mesmo a agarrar na outra mulher e a empurrar à força para fora de casa. Na luta, os botões da vestimenta são arrancados, cantando uma chuva de baques à medida que caem no chão. É um pormenor insignificante que fica na memória e resume muito de “Volta Para Mim.” Este é um terror que fala de espíritos, mas está sempre preso à materialidade do dia a dia, definindo a alma como uma extensão da carne, a memória como algo físico, o transtorno mental como uma infeção para a qual não há cura.

Volta Para Mim

Conclusão:

  • “Volta Para Mim” não se recomenda a quem facilmente se enoje perante sangue e vísceras no grande ecrã. De facto, este é um dos filmes de terror mais gráficos dos últimos tempos, oferecendo algumas mortificações quase inéditas no contexto deste género na sua vertente mais mainstream. Alguma vez pensaram no que aconteceria se tentassem comer uma faca? Venham ver a nova provocação dos RackaRacka para descobrir. Garanto que jamais esquecerão o som dos dentes a partirem-se contra a lâmina.
  • Dito isso, o gore só se manifesta nesta dose reforçada porque a dupla australiana está a explorar uma visão híper-material do terror, repensando o cinema de acordo com princípios hápticos, muito além da usual visceralidade desta nossa querida sétima arte. Também é, em certa medida, uma revisão do Grande Dame Guignol, cheio de vontade em trazer ao novo milénio as loucuras hagsploitation das décadas de 60 e 70 do século passado.
  • Sally Hawkins está em estado de graça – ou será desgraça? – no papel principal deste circo macabro, rendendo-se às possibilidades mais perversas do texto. Este é talvez o melhor trabalho da atriz desde que ela ganhou o Urso de Berlim e o Globo de Ouro por “Um Dia de Cada Vez.”
Overall
7/10
7/10
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