Xavier Dolan

O maximalismo emocional do cinema de Xavier Dolan

Enquanto esperamos pela estreia de “The Death and Life of John F. Donovan”, relembremos a filmografia de Xavier Dolan e o seu estilo formal, onde as emoções das suas personagens explodem em mecanismos vistosos, exuberantes e profundamente desavergonhados.

Xavier Dolan começou a sua carreira muito cedo em comparação à maioria dos cineastas. Aos 19 anos ele estava já a filmar a sua primeira longa-metragem, uma obra que viria a ser exibida pela primeira vez no Festival de Cannes de 2009. Esse filme, “Como Matei a Minha Mãe” foi recebido com o tipo de aclamação crítica que outros tantos realizadores nunca conhecem em toda uma longa filmografia, anunciando o jovem canadiano como uma das grandes novas vozes do cinema mundial. As suas obras seguintes somente solidificaram tal estatuto e, aos 29 anos, Dolan prepara-se para estrear a sua primeira obra em inglês, depois de ter já assinado seis longas-metragens e ganho dois dos prémios mais prestigiados do Festival de Cannes, o Prémio do Júri por “Mamã” e o Grand Prix por “Tão Só o Fim do Mundo”.

Não obstante este aparente sucesso, as obras de Dolan não têm sido unanimemente celebradas, especialmente no que diz respeito às suas exuberantes escolhas estilísticas. Mesmo em análises positivas de alguns dos seus filmes, especialmente “Como Matei a Minha Mãe”, é habitual encontrar afirmações em como a abordagem formal de Dolan é imatura ou como alguns dos seus esforços resultam em filmes que parecem colagens de videoclips e pouco mais. É certo que a obra de Xavier Dolan é rica em decisões estilísticas que quase exigem a atenção do espectador para a sua beleza e virtuosismo estético, mas entender tais gestos como meramente decorativos é mostrar uma falta de entendimento em relação ao cinema de Dolan.

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Desde filmar as costas a materializar suas fantasias, Xavier Dolan exterioriza a perspetiva e realidade emocional das suas perosnagens.

No circuito dos festivais de cinema por onde as obras de Dolan passam inexoravelmente desde a sua primeira estreia na Croisette, é habitual encontrar autores cuja abordagem formal reforça uma distanciação entre o espectador e as realidades dramatizadas em cena. Alguns dos cineastas com que o cineasta canadiano competiu em festivais europeus são nomes mais acostumados a consenso crítico como Nuri Bilge Ceylan, Jonathan Glazer, Tsai Ming-liang, Andrey Zvyagintsev, Bertrand Bonello e Jean-Luc Godard. Todos são autores com estéticas muito próprias que, de certo modo, funcionam como filtros pelo qual constroem e apresentam narrativas e ensaios, apelando a uma distanciação estética entre cena e espectador ou então usando a fricção entre elementos contrastantes para edificar seus exercícios. Em Dolan, por muito exuberante que o seu estilo possa ser, nunca há distância e muito menos fricção entre formalidade e o que está em cena.

Isso ocorre já que o estilo de Dolan é regido por uma sensibilidade a que poderíamos facilmente apelidar de maximalismo emocional, uma estética que extrapola as extremidades psíquicas dos protagonistas das narrativas destes filmes e as faz explodir em soluções formais. Quer seja câmara lenta, cores berrantes, uso de música pop, repentinos flashes de imagens a entrecortar cenas, manipulação do formato do ecrã, generosa variação de foco e desfoque, simbolismo vagamente onírico e até composições repetitivas e vagamente claustrofóbicas, todos estes mecanismos, quando empregues no cinema de Dolan, seguem uma rigorosa lógica emocional. O aspeto final da conflagração de todas estas escolhas é algo exuberante, mas a impressão de indulgência e imaturidade não é um acidente, mas um reflexo das psiques à volta das quais Dolan centra todos os seus filmes.

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Quer sejam a mãe e filho de “Como Matei a Minha Mãe”, o duo de amigos apaixonados pelo mesmo homem em “Os Amores Imaginários”, a professora transgénera e sua amada em “Laurence Anyways”, a figura enlutada de “Tom na Quinta”, o trio no centro de “Mamã” ou a família estilhaçada de “Tão Só o Fim do Mundo”, todos os protagonistas de Dolan são figuras em momentos de crise ou transição, figuras encurraladas num momento de crispação sentimental. Como Christopher Heron aponta no seu ensaio sobre Dolan para o Festival de Toronto, tais personagens também partilham um interesse na curadoria do seu aspeto e persona, algo que Dolan ilustra ao invés de deixar em subtexto.

O próprio estilo de atuação dos atores no cinema de Dolan segue uma lógica de exteriorização máxima de emoção. Os filmes deste canadiano são melodramas gritados, repletos de histrionismos e epítetos daquilo que muitos definem como histeria. Quando Dolan assim desdobra a sua narrativa em momentos musicais e sequências fortemente desenhadas com um gosto pelo excessivo, ele está somente a gritar em par com as suas personagens. O seu grito é formalista e não vocal, mas o efeito é o mesmo, uma torrente de emoção atirada contra o espectador que ora se deixa levar ou é quase atacado por um nível de exuberância invariavelmente monstruoso.

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Em LAURENCE PARA SEMPRE, uma cena de esmagadora melancolia chega mesmo a ser pontuada por uma tempestade folhas outonais.

Com isto dito, a existência de uma clara disciplina no modo como Dolan usa os seus muitos mecanismos estilísticos e obstinados piscares de olho à filmografia de outros cineastas nem sempre resulta numa experiência positiva. Em “Mamã”, o uso de grandes planos claustrofóbicos e fantasias musicadas concebem um retrato explosivo das personagens em cena, seus desejos e o horrendo contraste entre esses mesmos desejos e a realidade que estão condenados a viver. Em “Tão Só o Fim do Mundo”, as mesmas exatas soluções têm um efeito negativamente claustrofóbico que rouba muito do impacto do texto adaptado de uma peça de Jean-Luc Lagarce.

Não é que Dolan vá contra a racionalidade estilística do seu maximalismo emocional neste caso. Afinal, o uso de grandes planos que nos prendem às expressões e vocalizações extremas do elenco são um claro meio de telegrafar a claustrofobia emocional do protagonista, enclausurado numa situação familiar a vibrar de ressentimentos antigos. Até a desfragmentação espacial conjurada por esse mesmo mecanismo ajuda à imersão do espectador na psique das personagens, sendo o espaço quase só definido por pormenores cujo valor sensorial ocasionalmente faz o filme cair em sequências musicais em que Dolan dança pelo palácio da memória das suas figuras e aí deixa o espectador respirar.

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TÃO SÓ O FIM DO MUNDO é, uma tapeçaria de claustrofobia emocional e estética.

O problema é a invariabilidade desta lógica formal emparelhada com um texto que não foi feito para o tipo de imersão estilística que Dolan prefere. Nos filmes escritos pelo cineasta, que também costuma fazer a montagem e desenhar os figurinos das obras, esta incompatibilidade não se manifesta e as obras fluem de um modo mais orgânico, não obstante o claro anti naturalismo dos seus gestos formais. Uma coisa é certa, a aparência de imaturidade e indulgência na estética de Dolan é somente uma ilusão, uma confusão entre exuberância emocional telegrafada em estilo com a falta de disciplina cinematográfica.

Só resta saber se o realizador continuará a empregar o seu maximalismo cinemático em textos feitos como condutores dessa mesma abordagem, se irá adaptar o seu estilo ou se irá repetir os mesmos passos em falso de “Tão Só o Fim do Mundo”. Talvez o seu próximo projeto, “The Death and Life of John F. Donovan” nos possa dar uma resposta. Até lá, podemos sempre revisitar os outros filmes do realizador e mergulhar nos seus poços de emoção e nos deixar inebriar pelo seu estilo cinematográfico.

Qual é o teu filme preferido de Dolan? Concordas connosco ou pensas que o enfant terrible do cinema canadiano é um realizador indisciplinado? Deixa a tua resposta nos comentários.

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