A Assassina, em análise

Na sua mais recente obra, Hou Hsiao-hsien oferece uma visão de rarefeito cinema, construindo em A Assassina uma tempestade de maravilhas visuais, sónicas, rítmicas e conceptuais com escassa comparação nos cânones do cinema contemporâneo.

De um ponto de vista narrativo, A Assassina é incrivelmente difícil de completamente processar numa primeira visualização. Tal como na maioria da sua filmografia, Hsiao-hsien coloca a imagem, movimento, tempo e som acima de qualquer preocupação com história, mas não há dúvida que existe um enredo em A Assassina, oculto pela opacidade estilística com que o seu autor aborda o material textual. Tal como o seu título claramente indica, a narrativa deste filme desenvolve-se em torno de uma protagonista cuja principal característica é a sua sanguinária profissão, para a qual ela foi treinada durante toda a sua vida. Como espetadores, observamos o primeiro assassinato de Nie Yinniang e somos também testemunhas de como, após uma imperdoável mostra de piedade, ela é enviada para a província onde cresceu com o intuito de matar o seu primo e antigo noivo, uma figura de importância estratégica nos jogos políticos do império, que nesta particular época histórica estava a balançar-se no precipício da iminente rebelião.

A Assassina

O restante desenvolver do enredo é como que uma versão chinesa de Hamlet completo com trágicas intrigas da corte senhorial e onde o grande foco do retrato humano do filme é a incerteza e nunca qualquer tipo de certa progressão de eventos. Com o trabalho de encarnar a cifra humana sobre a qual o filme deposita as suas diversas indagações ideológicas está a atriz Qi Shu, na sua terceira colaboração com o realizador. A cantora tornada atriz é um dos trunfos mais preciosos do filme, trazendo uma dimensão humana ao conflito interno do filme, ao mesmo tempo que perfeitamente engloba na sua prestação o tipo de abordagem formalística que o realizador prefere em prol de qualquer tipo de claridade de conteúdo. As suas reações silenciosas quando confrontadas com alguns dos colossais monólogos que preenchem certas passagens do filme são de particular valor, ancorando a experiência da audiência numa palpável realidade tonal e emocional sem descurar na abstração informacional necessária para a coesão estilística da obra.

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Apesar desta clara existência de um enredo, que apesar de simples consegue ser paradoxalmente inescrutável, A Assassina será certamente um filme incrivelmente frustrante para uma audiência que procure uma convencional narrativa, ou mesmo para quem veja esta obra em busca de uma obra do género wuxia. Independentemente desta natureza superficialmente exclusiva, ou até elitista do filme, A Assassina é uma das mais excitantes obras de cinema a emergirem nos últimos anos, propondo uma visão quase que puramente sensorial desta arte e oferecendo uma panóplia de prazeres raramente experienciados na escuridão da maioria das salas de cinema.

A Assassina

Já foi grandemente louvada por quase todos os críticos de cinema internacionais, mas há que louvar a magistral fotografia de Lee Ping-bin, que conjura um mundo de uma beleza estonteante, onde a mera observação estática de um tableaux natural consegue ser arrebatador devido à simples beleza da imagem e à estranha complexidade que existe nas suas subtis variações, como o movimento de nuvens sobre a escarpa de uma montanha. Os primeiros minutos do filme aparecem em glorioso preto-e-branco, mas a restante duração de A Assassina é-nos apresentada em pitoresca cor, tão viva como suave e complementada por sombras de uma profundeza que lembra a absoluta negrura de uma mancha de tinta-da-china. De igual modo impressionante é o design do filme, onde as texturas e transparências dos materiais são de particular importância, ajudando a construir um mundo de luxuriante sensações sugeridas pelo simples, mas sismicamente intenso, deslizar de uma manga de seda ou o oscilar de uma cortina translúcida.

Se os visuais encantam com a sua sofisticação visual, digna das paredes das mais celebradas galerias do mundo, os sons não ficam para trás. Num filme tão caracterizado por esmagadoras muralhas de opressivo silêncio e longos blocos de diálogo diretamente declamado, seria de esperar que o som deixasse um pouco a desejar em termos de complexidade, mas tal nunca ocorre. A contrastar com esses momentos de quietude auditiva, Hou Hsiao-hsien e sua equipa criaram uma sonoplastia repleta de delicados sons, como sussurros naturais a cantaram à distância e abrasivos momentos musicais. A banda-sonora, composta por Lim Giong, é de especial relevância, injetando uma incongruente contemporaneidade minimalista na observação fria e conspícua reprodução de época que se manifesta nos restantes elementos formais.

A Assassina

Mas mais do que esta celestial tempestade de hipnotizantes imagens e cortantes paisagens sonoras, é na montagem e estruturação rítmica que A Assassina encontra as suas mais ousadas façanhas cinematográficas. Ao construir um filme que oscila entre longas cenas de exposição que pouco oferecem em termos de concreta informação, súbitos momentos de ação que parecem explodir com quaisquer noções de tempo que o filme tenha desenvolvido até então e uma desafiante fixação em longas sequências que evitam a todo o custo a presença de qualquer tipo de relevância narrativa ou fácil simbologia, Hou Hsiao-hsien criou uma obra que ostensivamente desafia os padrões do cinema contemporâneo, mesmo o mais ousado e ponderoso tipo de produção cinematográfica que enche os festivais internacionais com suas eruditas seleções. O autor quebra qualquer regra de classicismo estrutural, estilhaçando a paciência da audiência, ao mesmo tempo que a desafia de um modo tão excitante como frustrante.

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É claro que, apesar da sua magnificência, A Assassina não é somente um exercício em forma, sendo que a sua ambivalência moral na exploração dos conceitos de dever e honra na cultura ancestral chinesa é de igual louvor, se bem que muito mais difícil de completamente experienciar quando comparado ao espetáculo de imagens e sons que o acompanham. As próprias variações rítmicas que rompem com a rígida mise-en-scène de observação estática com mínimas variações, parecem conter um comentário de Hsiao-hsien sobre os seus temas de dever e honra, ou mais especificamente sobre o conceito ainda mais abstrato da incerteza. Na sua abordagem críptica, Hsiao-hsien olha o passado chinês como um mundo alienígena, onde a ordem social e moral calcifica tudo onde toca, tornando a vida numa série de binárias que se abatem sobre si mesmas quando ocorre a questão da dúvida, quando é proposta uma multiplicidade de visões do mundo que contraria a dualidade ideológica regente.

A Assassina

Há que ter algo bastante claro quando se vai ver A Assassina. Este é um filme que nada faz para se tornar acessível à sua audiência, negando quaisquer tipos de facilitismos percecionais e exigindo uma abertura pessoal que certamente irá causar repelência em muitos espetadores. No entanto, para quem estiver disposto a adaptar a sua observação aos padrões exigidos pela obra em si, A Assassina irá conter uma das mais magníficas experiências de puro cinema nos últimos anos, mesmo que seja apenas como uma experiência unicamente sensorial. Muitos se perguntam o que é o cinema? Imagens em movimento? Sons e movimento? Modulação temporal? O contar de histórias? Tão numerosas como os perguntadores são as possíveis respostas, mas, na sua característica e mística maneira, Hou Hsiao-hsien parece ter oferecido em A Assassina a sua resposta, concebendo uma criação de cinema rarefeito como pouco se vê, mesmo nas filmografias dos mais audazes autores.


Título Original: Nie yin niang
Realizador: Hou Hsiao-hsien
Elenco: Qi Shu, Chen Chang, Yun Zhou    
Midas Filmes | Drama, Ação | 2015 | 105 min

A Assassina

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