Mobile Homes

FEST ’18 | Mobile Homes, em análise

Imogen Poots nunca esteve melhor que em “Mobile Homes”, o filme que vai abrir o FEST | Festival Novos Cineastas Novo Cinema, a realizar-se de dia 18 a 25 deste mês em Espinho.

Vladimir de Fontenay é um realizador francês sediado em Nova Iorque que, como tantos cineastas europeus antes de si, decidiu centrar um filme na exploração da cultura norte-americana, com um especial enfoque na vida de indivíduos empobrecidos a viver nas margens da sociedade. “American Honey” de Andrea Arnold é um bom filme com o qual comparar “Mobile Homes”. Mais do que uma fonte de inspiração, essa obra parece ser quase uma versão ideal do que “Mobile Homes” poderia ter sido nas mãos de um cineasta mais seguro e menos perdido numa visão vagamente condescendente do seu objeto de estudo. A figura que mais representa esse objeto é Ali, a jovem mãe de um menino de oito anos chamado Bone.

Encontramos este par a deambular pelas paisagens gélidas da fronteira entre o Canadá e os EUA a viver numa carrinha com Evan, o namorado de Ali e a única figura paterna que Bone alguma vez conheceu. Não que ele tenha grandes qualidades de pai, sendo que se parece sempre preocupar mais com a própria pele e seus devaneios hedonísticos do que com a segurança básica do miúdo. Ali, pelo que lhe compete, não é uma mãe particularmente extremosa. Mesmo que ela ainda não o saiba no início do filme, é óbvio para o espectador que Ali ainda é mentalmente uma criança incapaz de lidar com as responsabilidades que vêm com um filho.

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Uma unidade familiar profundamente disfuncional.

É fácil categorizar Ali e Evan como negligentes para com Bone e o olhar de Fontenay parece mesmo dirigir o espectador a tais conclusões, mas isso não quer dizer que não haja limites para a displicência parental em cena. Para Ali, pelo menos, existe uma clara linha que não pode ser trespassada e quando, numa noite atribulada, Evan abandona Bone durante um raid da polícia, o seu namorado claramente foi longe demais. A esta altura, já mais de um terço da duração do filme passou, mas é só aqui que “Mobile Homes” parece ganhar propósito e algum semblante de esqueleto concetual e temático.

Escondendo-se no que parece ser uma casa vazia durante a noite, mãe e filho acordam para descobrirem que o edifício está em movimento, sendo uma habitação pré-fabricada a ser levada para um novo local. Tal imagem é claramente o que motivou o realizador a fazer o filme, tendo já sido o tema central de uma das suas curtas. Interpretando o olhar embasbacado das personagens e o modo como a câmara trata estas casas com uma atitude quase reverencial, seria possível até pensar que isto é algo peculiar e verdadeiramente espantoso, até para quem vive nas regiões retratadas no filme. E é aí que “Mobile Homes” colide com um dos seus maiores problemas.

Na verdade, cerca de 20 milhões de americanos vivem em casas pré-fabricadas. Não há nada de mágico ou espantoso nelas, a não ser que o observador seja alguém como um cineasta parisiense para quem tais visões são deliciosas mostras de grotesco americano e não uma parte desinteressante do dia-a-dia. É, portanto, meio ridículo ver como Ali e Bone se admiram tanto com a casa em movimento, sendo que isso denota quão, apesar do registo realista das filmagens e estilos de performance naturalistas, “Mobile Homes” é um filme vitimado pela distância e incompreensão entre os seus criadores e as realidades nele representadas.

O mesmo ocorre quando a história de “Mobile Homes” tenta retratar o mundo das lutas de galos ilegais e não consegue conter-se ao ponto de não incluir um momento em que Ali explica como chupar com a boca as acumulações de pó e excrementos nos olhos das aves. Isso não é um apontamento de realismo vivido, mas sim uma clara tentativa de chocar o espectador e deixa um infeliz gosto de elitismo urbano na boca de quem vê. Nada disso implica, contudo, que Vladimir de Fontenay não tem talento. Afinal, o seu primor formal está bem à vista, até numa cena verdadeiramente chocante que podia ter saído de um filme de ação com dez vezes o orçamento deste modesto drama.

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Imogen Poots eletriza o ecrã e eleva todo o filme com a sua prestação.

Noutras ocasiões menos vistosas, é o modo como Fontenay encontra beleza nos pormenores do quotidiano das personagens sem ter de glamorizar a sua existência que destacam o seu virtuosismo. Um plano da luz do sol a entrar pela janela de uma carrinha escura é um bom exemplo dessa beleza mundana, suja, comum, mas não por isso menos merecedora de admiração estética. Num registo estilístico muito diferente, a sonoplastia do projeto também merece elogios, quer seja pela sua imersividade ligada à experiência sensorial das personagens, quer seja no uso de uma banda-sonora eletrónica capaz de apimentar até as mais aborrecidas cenas de inação observacional.

Com isso dito, não é nem a fotografia de Benoit Soler ou a música de Matthew Otto que elevam“Mobile Homes” acima de tantos outros projetos semelhantes, mas sim o elenco. Como Robert, o dono das casas pré-fabricadas que se mostra caridoso para com Ali, Callum Keith Rennie é habilidoso na sua sugestão de um homem com integridade moral que, apesar disso, tem o potencial para ser ameaçador ou predatório. No papel de Evan, Callum Turner é um pequeno milagre de carisma sedutor mesclado pela toxicidade de um homem cronicamente irresponsável que, quando lhe é negado aquilo quer, não tem problemas em tornar-se violento. A certa altura, Evan parece mesmo estar a precipitar o filme para um registo de terror.

Com isso dito, por muito bons que Rennie e Turner possam ser, o filme pertence a Imogen Poots. A atriz inglesa há anos que sugere ser uma das grandes da sua geração, mas nunca teve um papel onde fosse capaz de mostrar isso. Ali é esse papel e Poots finca-lhe os dentes com toda a insolência de uma juventude perdida e o desespero de uma mãe com o filho em risco. Nas suas mãos, as indefinições textuais de Ali tornam-se em mostras de complexidade psicológica e certos momentos em que as suas motivações podiam ser questionáveis são autênticas sinfonias de claridade emocional a explodir no seu olhar e linguagem corporal. Poots nunca nos pede simpatia, mas exige empatia humanista para com a sua personagem e, enquanto espectadores, é difícil negar-lhe isso tal é a majestade gloriosa da sua interpretação.

 

“Mobile Homes” vai ser exibido dia 18de junho no âmbito do FEST | Festival Novos Cineastas Novo Cinema, em Espinho. Não percas!

 

Mobile Homes, em análise
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Movie title: Mobile Homes

Date published: 13 de June de 2018

Director(s): Vladimir de Fontenay

Actor(s): Imogen Poots, Frank Oulton, Callum Turner, Callum Keith Rennie, Roger Barnes, Karen LeBlanc,

Genre: Drama, 2017, 105 min

  • Cláudio Alves - 60
60

CONCLUSÃO

“Mobile Homes” é a primeira narrativa realizada a solo por Vladimir de Fontenay e, apesar de sérias fragilidades, representa um trabalho promissor para o cineasta. Apesar disso, é o trabalho do elenco que dá razão à obra para existir, especialmente o trabalho de Callum Turner e Imogen Poots.

O MELHOR: A prestação de Imogen Poots que é capaz de elevar todo o filme com a sua qualidade. Uma certa conversa entre Ali e Evan é de particular destaque. Aí, ela está a ouvir as mesmas promessas de um futuro impossível pela milésima vez, mas, ao invés de sorrir passivamente, ela desmancha-se numa tempestade de raiva temperada pela dor de um animal encurralado e sem hipótese de escapar do fado que a vida lhe traçou.

O PIOR: A displicência textual que se mostra na falta de estrutura, a distância sentida entre o cineasta e seu objeto de estudo e a existência de uma passagem de diálogo em que o filme praticamente para de modo a anunciar as ramificações temáticas do seu título.

CA

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