O Agridoce de Katie Von Schleicher

Por entre a conversa bem-disposta de Katie Von Schleicher com a banda e o público, soavam suaves as palavras de desejo lacerado e interrogante solidão das suas canções.

Com um breve, despretensioso olá, Alek Rein cumprimentou o público e, sem mais delongas e muita humildade, abriu, com “River of Doom”, o alinhamento de temas de Mirror Lane (2016), mas também umas mais “antiguinhas” do EP de 2010, Gemini, como “Ligia” e “In the Cold of Another Night Out”. Reduzidas ao esqueleto, com arranjo para voz e guitarra acústica, as canções neopsicadélicas de Alexandre Rendeiro revelavam mais a origem folk. E puderam tornar-se o palco do espírito do homem (sim, trocadilho…), enquanto o seu autor transpirava de tanto malhar nas cordas e dedilhar virtuosamente breves solos, pondo a alma toda em tirar da guitarra acústica a força da reverberação e da distorção eléctricas ali em falta.

Alek Rein (© Margarida Ribeiro)

Para “a Catarina” uma das canções, as restantes para “a minha mãe”. E percebi de quem era a voz que, mesmo atrás de mim, cantava, em eco isolado e irritante, todas as letras. A ternura levou a melhor e perdoei-lhe. Para fechar, Alek Rein perguntou se havia pedidos e uma voz (ao lado da mãe) gritou “Magic Fiddle”. Alguns instantes para mudar a afinação da guitarra e o ritmo infeccioso da música soou, ficando-nos no ouvido e nos pés vários minutos depois deste amante da folk psicadélica dos anos 60 ter saído do palco e nos ter conquistado com a sua simplicidade e futuro promissor.

(© Margarida Ribeiro)

Já cheia a Galeria Zé dos Bois e nós a correr para voltar ao lugar da frente depois de um cigarro deixado a meio, entram Katie Von Schleicher (voz, guitarra e teclados), Adam Brisbin (guitarra) e Justin Veloso (bateria). Se houve conversa antes dos primeiros ruidosos acordes, não sei, porque já só tive tempo de ouvir a explosão de som enquanto passávamos a porta. Não faz mal, conversa foi o que não faltou depois.

(© Margarida Ribeiro)

Durante as primeiras canções, a necessidade de equalizar a mistura e ajustar o equipamento de som não atrapalha a banda, antes suscita comentários divertidos: “It’s an emotional amp!” Depois de “Sell It Back”, Katie Von Schleicher partilha o gosto de estar connosco pela primeira vez:

We’re here because we were lucky enough to get booked, but also because I asked my booking agent if it were possible to really come to Portugal. We’ve had weird shows, you know, in the UK before this. This is just wonderful, this whole day!

Mais duas ou três canções e Katie pede-nos que lhe contemos algumas coisas sobre a nossa cultura. Confessa o seu desconhecimento, lera apenas Fernando Pessoa. Ainda assim, fora buscar a um poema dele o nome da sua primeira banda. Era ele o nosso Hemingway? Risos e silêncio. Claro que não, Hemingway era romancista. Fiquei a pensar que tinha de ser um poeta, mas qual? Só a meio da “Nothing” é que me lembrei, tarde de mais para lho gritar de volta, que a resposta era, obviamente, Walt Whitman.

Katie Von Schleicher (© Margarida Ribeiro)

A descontracção da banda, com Adam a soprar a Katie, dizia-nos ela, frases feitas de transição, não roubou nada à emotividade da música. Afundada na mistura, a voz de Katie flutuava suave, mas cheia de inflexões, tão mais plangente quanto menos melodramática. As letras permaneciam atravessadas de exasperado desejo (“no one who wanted more/could have any less”), ressentimento pela sensibilidade embotada (“I can’t feel nothing at all”) e perplexidade diante do afastar-se de tudo o que se tenta agarrar (“Once I get it, it’s already gone”). Contra a solidão de um quarto de hotel, a aspiração é a de, canta Katie, tocar as coisas que têm sentido e “hold on to people”.

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Em contrapartida, contrastando com a doçura da voz, as guitarras e a bateria redobraram de violência, num instrumental cheio de distorção mas sempre em staccato, igualmente agressivo na sua nitidez contundente e precisão inflexível. A experiência ao vivo destas canções é bem menos domesticada do que a oferecida pelo disco, bem mais próxima das raízes punk da sua compositora. Com saltos repentinos e angulares, Adam percorria incansável o lado direito do palco, ora aproximando-se do microfone para cantar, ora afastando-se dele para fazer vibrar veementemente um acorde, ora de novo se aproximando para num ápice ligar ou desligar o pedal de distorção.

Adam Brisbin (© Margarida Ribeiro)

Não podia faltar, já mais para o final, o grande êxito de Bleaksploitation, “Baby Don’t Go”. E finda a canção, como do final se tratava, alguém devolveu o refrão a Katie Von Schleicher, cantando em falsete “Baby, doooon’t go!” Katie riu-se, segundos depois percebeu o trocadilho e desmanchou-se em gargalhadas. O concerto terminou com a nota suave de “Mary”, a nostalgia de casa a fazer as honras da despedida (embora viva em Brooklyn, Katie é originária de Maryland). Uma última canção no encore, a primeira do novo disco, “Image”, e a banda fechou o concerto com a mesma energia com que começara. Encerrado o círculo de canções sobre a solidão, a simpatia continuou lá em baixo, no hall de entrada, com a banda rodeada de fãs em amena cavaqueira. Saímos sem dizer nada, para não interromper. Mas até agora, e mesmo enquanto escrevo, arrependo-me de não ter parado para lhe dizer: Walt Whitman.

Fotografias de Margarida Ribeiro

O Agridoce de Katie Von Schleicher
  • Maria Pacheco de Amorim - 85
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