LEFFEST ’17 | Três Cartazes à Beira da Estrada, em análise

Três Cartazes à Beira da Estrada” é a terceira longa-metragem de Martin McDonagh, o realizador de “Em Bruges”, e é uma espetacular montra para a ferocidade inigualável de Frances McDormand. Este é um dos vários títulos fora de competição da secção oficial do Lisbon & Sintra Film Festival.

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A filha adolescente de Mildred Hayes foi brutalmente violada, assassinada e o seu corpo foi incinerado. Sete meses depois da tragédia, a polícia local ainda não foi capaz de encontrar o culpado. Aliás, nem sequer encontraram nenhum suspeito. Enfurecida com a falta de progresso da investigação Mildred, que é divorciada e vive agora sozinha com seu filho Robbie, decide fazer algo para chamar a atenção de uma comunidade e de autoridades que parecem já se ter esquecido dos horrores que ceifaram a vida da sua filha. Assim sendo, ela paga para a instalação de três enormes cartazes numa das estradas menos usadas de acesso a Ebbing. A sua mensagem tripartida é clara: “Violada enquanto morria/Ainda nenhuma apreensão/Porquê, Chefe Willoughby?”.

O aparecimento dos cartazes causa alarido na comunidade, sendo que várias pessoas a tentam convencer a retirá-los. A polícia, com a exceção do chefe acusado, provam ser os seus adversários mais hostis, chegando mesmo a prender a sua colega de trabalho e amiga numa tentativa de fazer Mildred ceder. Ela recusa-se a ouvir a quem quer que seja, reagindo com violência aos seus críticos, quer seja verbal, como com um padre intrometido, ou física, como ocorre com adolescentes estúpidos que ousam atirar um refrigerante ao para-brisas do seu carro. Uma objeção mantém-se constante e particularmente incisiva: no final, os cartazes não ajudam ninguém e, se tanto, apenas parecem distrair a comunidade dos horrores infligidos à filha da protagonista,

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Enquanto audiência, é fácil deixarmo-nos seduzir por uma figura tão claramente insuflada pela fúria justiceira que vemos arder nos olhos de Mildred. Ela move-se como uma mulher numa missão, sua postura muitas vezes filmada como se ela estivesse num western transmite segurança e imparável bravura, seus insultos e palavras mais ácidas têm o brilho ilusório de verdades abrasivas, mas, no final, as pessoas que caracterizam as suas ações como inconsequentes não estão erradas. Parte da razão pela qual esta é a melhor prestação de Frances McDormand no grande ecrã desde o seu Oscarizado trabalho em “Fargo” deve-se precisamente ao modo como a atriz consegue simultaneamente telegrafar o carisma avassalador desta mulher em busca de justiça vingativa, assim como a figura de uma mãe destroçada em busca de algum veículo para a sua incomensurável dor.

“Três Cartazes à Beira da Estrada” é um filme com numerosos problemas, mas a inconsequência das ações da sua protagonista não é um deles, sendo talvez o seu mais peculiar e precioso elemento. No panorama atual, em termos de ficção popular do pequeno e grande ecrã, a figura de um anti-herói é bastante comum, quase banal, mas a sua variante feminina é uma raridade. Indo ainda mais longe, uma figura anti-heroica cujos esforços se tornam tão potencialmente homicidas como os de Mildred, sem nunca levarem a lado algum ou moverem a narrativa investigativa para a frente, e que o realizador encara como verdadeiramente monstruosos são ainda mais raros. Na sua terceira longa-metragem, o dramaturgo irlandês Martin McDonagh mostra mais ambição do que outrora, ativamente forçando a audiência a questionar os arquétipos que lhes são inatos, assim como seus pressupostos morais em relação a histórias de vingança e uso de violência.

Esse último ponto é bastante central a toda a construção de “Três Cartazes à Beira da Estrada” pois este é um filme extremamente violento, cheio de casuais espancamentos, menções de horrores inimagináveis contra mulheres e até corpos a contorcerem-se no chão enquanto a sua carne viva arde em acesas labaredas. Apesar da abundância de tais momentos, McDonagh raramente os apresenta como algo positivo ou divertido de se ver. A verdade é que este é um filme vítima de uma abordagem formal bastante medíocre, mas a banalidade nauseante das suas imagens acaba por ser uma mais-valia ao despir a violência em cena de qualquer tipo de estilo sedutor. No mundo desta obra, a violência é quase sempre horrível de se testemunhar, apesar de ser aquilo a que praticamente todas as figuras humanas recorrem quando em crise.

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Seguindo essa linha de pensamento, há que se admitir que é muito fácil comparar negativamente o filme de McDonagh à oeuvre dos irmãos Coen. Por exemplo, o estilo de diálogo é incrivelmente semelhante, mas não tem a inteligência e travos de niilismo dos mestres americanos, qualquer plano na filmografia dos Coen tem mais valor estético do que a totalidade de “Três Cartazes á Beira da Estrada” e, por muito brilhante que McDormand seja aqui, o seu já mencionado trabalho em “Fargo” continua a ser o píncaro qualitativo da sua carreira.

Com isso dito, nas mãos dos Coen esta história de pessoas estúpidas num universo amoral e estúpido, onde todos recorrem a destruição para resolverem os seus problemas, apenas tornando tudo pior para os que os rodeiam e si mesmos. Teria sido provavelmente uma comédia negra cheia de ironia. Nas mãos de McDonagh, por muitas piadas que o argumento contenha, esta é uma tragédia. Sinceridade não está na moda, nem para o público geral ou para a crítica internacional, mas esta faceta de “Três cartazes Á Beira da Estrada”, apesar de não ser tão bem conseguida como a natureza multifacetada da sua heroína, faz muito para atenuar os maiores deslizes e hipocrisias do seu argumento e realização.

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Referimo-nos ao tratamento vagamente misógino de qualquer personagem feminina que não seja Mildred, da abjeta falta de especificidade geográfica apesar do título original inglês fazer questão de mencionar Ebbing, Missouri. referimo-nos ao modo como McDonagh tem a ousadia de ter as suas personagens a criticar o racismo da polícia num filme onde quase todas personagens não caucasianas são quase que adereços desprovidos de personalidade, prontas a serem postos em cena somente quando alguém quer comentar a cor da sua pele. Referimo-nos ao empenho do filme em redimir a figura de um polícia violento, incompetente, homófobo, sexista e racista, chegando a torná-lo quase num coprotagonista cujo arco narrativo apenas tem esperança de funcionar devido ao trabalho heroico do ator Sam Rockwell.

No final, “Três Cartazes à Beira da Estrada” é uma obra concetualmente confusa, talvez vítima de desmesurada ambição pela parte do seu criador, cujas explorações de moralidade comunitária sempre pareceram mais seguros e eficientes num contexto irlandês e nos palcos. Este é um esforço cinematográfico com o seu quê de desastre caótico, mas há sempre algo em si que faz brilhar a luz do valor pelo meio da névoa de incompetência formal e hipocrisia textual. Esses rasgos de luz podem ser o trabalho dos atores, uma rara fala genuinamente divertida ou a simplicidade da sua derradeira cena onde, face à violência virulenta do mundo, o filme faz um último apelo à empatia e bondade humana face à sede de vingança.

 

Três Cartazes à Beira da Estrada, em análise
Três Cartazes à Beira da Estrada

Movie title: Three Billboards Outside Ebbing, Missouri

Date published: 21 de November de 2017

Director(s): Martin McDonagh

Actor(s): Frances McDormand, Sam Rockwell, Woody Harrelson, Peter Dinklage, Lucas Hedges, Abbie Cornish, Caleb Landry Jones, John Hawkes, Clarke Peters

Genre: Drama, Comédia, Crime, 2017, 115 min

  • Claudio Alves - 65
  • Catarina d'Oliveira - 90
  • Maria João Bilro - 90
  • José Vieira Mendes - 90
  • Filipa Machado - 65
  • Miguel Pontares - 83
  • Daniel Rodrigues - 72
  • João Fernandes - 85
  • Luís Telles do Amaral - 90
  • Maggie Silva - 75
81

CONCLUSÃO

A terceira longa-metragem de Martin McDonagh é uma comédia negra que, aos poucos, revela ser uma tragédia tingida pela dor da inconsequência e arbitrariedade da injustiça num universo amoral e numa vida sem significado tangível.

O MELHOR: A miraculosa prestação de Frances McDormand que quase consegue fazer com que um interlúdio choroso com um veado digital muito pouco convincente tenha algum peso emocional.

O PIOR: As venenosas hipocrisias do filme em relação ao tratamento de mulheres e questões de racismo sistemático.

CA

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One Response

  1. Frederico Daniel 13 de Fevereiro de 2018

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