O Menino e o Mundo, em análise

O Menino e o Mundo é uma magistral pantomima brasileira em que o realizador Alê Abreu concebe uma deliciosamente idiossincrática visão de mágoas de infância e da tragédia da globalização.

o menino e o mundo

Desde que a categoria se expandiu para 5 nomeados anuais, o Óscar de Melhor Filme de Animação tem-se vindo a afirmar como uma das mais prestigiosas seleções de nomeados da Academia de Hollywood, assim como a categoria que mais aberta está a cinema fora das normas e padrões estilísticos regentes no cinema americano mainstream. Grande exemplo dessa abertura e diversidade estilística é a usual presença de obras de animação de várias nacionalidades, assim como o curioso valor que é dado a obras de cariz mais formalmente experimental. Um desses filmes é, sem dúvida, O Menino e o Mundo, um filme brasileiro de 2013 que foi distribuído o ano passado nos EUA e conseguiu arrecadar uma muito merecida nomeação ao Óscar apesar de ser um filme com intenções bastante mais artísticas e sociopolíticas que a maior parte do cinema de prestígio que tanto tem presença entre os honrados dessa organização. Poder-se-ia mesmo dizer que a existência deste tipo de nomeados justifica a importância que muitos dão à Academia. Isto porque, será difícil imaginar que esta obra do realizador Alê Abreu pudesse ter alcançado tantas pessoas e conseguido ter distribuição em tantos mercados sem a sua nomeação. E o facto é que este filme merece ser visto.

A um primeiro vislumbre, será fácil menosprezar a magnificência desta obra enquanto um complexo filme animado. Afinal, comparado com muito do cinema de animação atual, a sua aparência híper colorida e de design simplista poderá parecer mais apropriado à Baby TV que a qualquer cânone do melhor da animação cinematográfica. É claro que, para quem tiver a generosidade de dar ao filme oportunidade de se afirmar, O Menino e o Mundo acaba por revelar como pega numa estética algo primitiva e dela desdobra uma expressividade de surpreendente sofisticação, que nada terá que ver com simplismos infantis.

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Aliás, será difícil imaginar uma audiência infantil a completamente apreciar este filme que, no seu âmago, é uma obra de forte crítica socioeconómica e cultural e cujo impacto depende muito do conhecimento que o seu público tem da industrialização e desenvolvimento económico do Brasil contemporâneo. Isto tudo sem sequer mencionar como o filme é completamente despido de desnecessária exposição ou usual textualidade narrativa, sendo quase um filme mudo, não fossem algumas indecifráveis vocalizações de uma salganhada de português do Brasil proferido ao contrário.

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A narrativa do filme segue, de certo modo, a sofisticada simplicidade dos seus visuais. A sua estruturação, por exemplo, não podia ser mais clara e quase grosseiramente juvenil. Um menino que vive numa zona rural do Brasil deixa a sua terra natal em busca de seu pai e acaba por chegar, na sua odisseia de amor filial, a uma metrópole moderna onde testemunha uma miríade de injustiças humanas por entre a cacofonia industrializada desta nova realidade urbana.

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Com tal história, Abreu concebe, em O Menino e o Mundo, uma declarativa visão de uma nação à beira de um apocalipse cultural em que o modernismo contemporâneo ameaça a completa destruição de um mundo mais antigo, em harmonia com os ambientes naturais e com as heranças mais ancestrais da cultura brasileira. Os visuais, em completa sinergia com os temas do filme, trocam uma coleção de coloridas e ensandecidas paisagens cheias de linhas curvas e elementos naturais por um inferno de retilíneas estruturas em cores fumarentas, cujos movimentos mecanizados se impõem sobre as figuras humanas que, em contraste, são pouco mais que umas rudes linhas e um círculo branco, como numa representação de uma pessoa num desenho de criança.

Mesmo a música e o som seguem este simples arco narrativo com magistral harmonia, construindo um mundo de sons ancestrais na terra natal do menino titular e, mais tarde, um inferno de ruídos artificiais e cacofonias tecnológicas no coração urbano. Nesse inóspito mundo de carros monstruosos, estradas sem fim e prédios que obscurecem o céu e o sol, existe, no entanto, uma lembrança viva da vida rural entre a natureza e a cultura intrinsecamente brasileira. Tal lembrança toma a forma de um aparente vagabundo que acompanha o menino na sua busca, retratado em cores fortes, assim como a música, reminiscente de um samba desconstruído, que vai surgindo por todo o filme em momentos chave.

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Já muito se mencionou da simplicidade de O Menino e o Mundo, mas há também que realçar o seu lado mais sério e complexo, bem escondido por inteligentes escolhas narrativas e formais. Afinal, por muito que o queiramos ignorar, este é um filme de grandes dimensões sociopolíticas, um filme mensagem sobre um país em processo de holocausto cultural na sua busca pelas glórias industriais da globalização. No entanto, Abreu nunca permite que a sua obra se torne num sermão cinematográfico, construindo, em contraste, algo que mais se aproxima de um melancólico lamento por uma realidade que já apenas existe em memórias. Desde o início do filme que são expostos jogos de realidade, sonho e lembranças, sendo que, mais perto do final, é fácil tirar a conclusão de que toda esta história é uma espécie de sonho, não de um indivíduo, mas de uma nação inteira, sobre um passado que já está meio esquecido e apagado, e que cujo apagamento poderá mesmo ser algo inevitável e tragicamente necessário.

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Em conclusão, O Menino e o Mundo acaba por se revelar como algo tão deliciado na sua representação de mágoas humanas como violentamente criativo nas suas brincadeiras estilísticas e enfurecido no seu comentário social. A sua mestria absoluta está no balanço destes tons e registos antagónicos, numa obra final que nunca mostra sinais de desmesurado esforço, sendo que mesmo o seu virtuosismo técnico encontra a sua apoteose na sua simplicidade. Basta olharmos para a expressividade das personagens quase minimalistas, onde conseguimos encontrar pulsante humanidade numa face composta por apenas um círculo branco, um par de manchas rosadas e dois riscos pretos.

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O MELHOR: O delicado humanismo que permeia por toda a produção.

O PIOR: Para alguns, a crítica social e cultural do filme poderá ser questionável, mas Abreu apresenta tudo com uma gentileza tal que tais fragilidades depressa se tornam inconsequentes.


 

Título Original: O Menino e o Mundo
Realizador:  Alê Abreu
Elenco: Vinicius Garcia, Marco Aurélio Campos, Lu Horta
Lanterna de Pedra | Animação, Drama | 2013 | 80 min

O Menino e o Mundo

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