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19º IndieLisboa | Medusa, em análise

‘Medusa’, a segunda longa-metragem de Anita Rocha da Silveira (‘Mate-me Por Favor’), que está na Competição Internacional, aborda desta vez as questões da religião, do machismo e sobretudo do extremismo, violência e ódio na sociedade brasileira da actualidade. Estreia em breve nas salas nacionais.

Depois da curta ‘Os Mortos Vivos’, apresentada em Vila do Conde em 2012 e da longa ‘Mate-me por Favor’ (2015), um misto de terror, desejo e comédia de adolescentes, sobre o grupo de meninas indefesas, ameaçadas por um suposto serial killer, à solta no Bairro da Barra da Tijuca no Rio de Janeiro, estreado na secção Orizzonti do Festival de Veneza, a jovem brasileira Anita Rocha da Silveira regressou com este inefável ‘Medusa’. 

Estreado no verão passado na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes 2021, é um filme, sobre mais um grupo de meninas entre adolescência e a idade adulta, agora menos indefesas, onde a protagonista é uma jovem evangélica pressionada pelas amigas, para ser prefeita e que, por isso, busca a liberdade e um novo ‘grito do Ipiranga’. A narrativa, ainda que tenha algo de uma distopia futurista, tem efectivamente uma base factual e actual: ‘Em 2015, deparei-me com uma série de notícias sobre ataques violentos a garotas adolescentes, realizados por outras jovens mulheres. Elas atacavam em grupo, na maior parte dos casos por considerarem a vítima ‘promíscua’, disse a cineasta Anita Rocha da Silveira, em Cannes, para justificar o ponto de partida da sua mais uma vez estranha história de terror contido, que aborda realidades muito precisas da sociedade carioca e brasileira em geral: religião, machismo, o avanço da extrema-direita e sobretudo a explosão do ódio e da violência mal-disfarçada, num País cada vez mais permeável ao populismo, aos dogmas das muitas igrejas evangélicas, combinado com as ideias do actual Presidente Bolsonaro.

VÊ TRAILER DE ‘MEDUSA’

É evidente que o filme inspira-se igualmente, no mito clássico da bela Medusa que foi impiedosamente punida por Atena, a deusa virgem, por cometer a falta de amar um homem. Mari (Mariana Oliveira) é uma jovem que pertence ao grupo das Preciosas do Altar, um coral de uma igreja neo-pentecostal carioca. Funcionária de uma clínica de estética, ela sente uma enorme pressão para manter as aparências e ser perfeita. Para ela própria, não cair em tentações, tenta controlar tudo e todos ao seu redor. No entanto, chegará o dia em que a vontade de gritar será mais forte do que nunca e um acidente faz com que ela seja abandonada pelo grupo a que pertence. A partir daí Mari procura libertar-se das amarras dos dogmas extremistas desse grupo feminino e conservador de activistas e fanáticas da religião evangélica.

Medusa
Em ‘Medusa’, da brasileira Anita Rocha da Silveira, um gangue de mulheres fazem tudo para controlar o seu redor.

‘Medusa’ centra-se  em Mariana ou Mari, essa rapariga que faz parte de um curioso grupo de ‘patricinhas’  — o mesmo que para nós as ‘betinhas’ — amigas religiosas, com ares e atitudes muito próximas dos protagonistas de ‘As Meninas de Beverly Hills’ (1995) ou da saga ‘Giras e Terríveis 2’ (2011); ou mesmo das várias comédias liceais norte-americanas, todas elas muito semelhantes no contexto. O grupo das Preciosas do Altar são ‘populares’ na cidade — com as suas contas no Instagram e com a sua obsessão pelo visual, por dicas e por ‘gostos’ ou curtidas — mas com uma diferença importante em relação às influencers, que têm agora um surpreendente destaque nas redes sociais: Elas fazem tudo no plano evangélico, religioso e (pelo menos nas aparências) são muito dedicados a Deus e ao seu pastor. As meninas também funcionam como uma espécie de gangue nocturno mascarado, que se dedica a perseguir outras meninas que consideram pecadoras. O objectivo é capturá-las e dar-lhes duas opções: renderem-se e juntarem-se ao grupo ou serem feridas, com um corte severo no rosto, que as deixará marcadas para a vida, algo que para uma sociedade tão repressiva, será uma espécie de condenação eterna; além disso, uma marca do pecado que as deixará de fora de tudo, inclusive da possibilidade de se casarem com um homem honesto, dessa sociedade. É neste contexto também que os homens e o machismo, paralelamente, e sem serem os protagonistas acabam por exercer o seu poder, nesta história em que as mulheres são as figuras principais: é um pastor com ares muito pop, que define a linha de comportamentos, a modéstia e a decência que as raparigas devem ter. Além disso, há também na história de ‘Medusa’ um bando de ‘betinhos’, que formam uma espécie de exército masculino disposto a actuar como força de choque e como mecanismo de controle desses ideias. Enquanto, as meninas dançam coreografias religiosas, em movimentos bem coordenados, ao som de hits pop musicais, com as letras alteradas com o objectivo de ‘servir o Senhor’, em versões quase camp, LGBTQ, num misto de danças de discoteca de ‘Febre de Sábado à Noite’ (1977) e de desfile militar. As Preciosas do Altar vivem também obcecadas com um caso do passado: o de Melissa, uma atriz famosa — já ‘Mate-me Por Favor’ era inspirado no caso verídico do assassínio da actriz Daniella Perez — que desapareceu de circulação, depois de uma situação nunca totalmente explicada. Mariana e Michelle (a loira líder do grupo, muito parecida com Rachel McAdams) querem encontrá-la, descobrir onde está e o que lhe aconteceu. Porém de uma forma inesperada, o rosto da própria Mari é ferido numa rixa,  dessas perseguições nocturnas do grupo, acabando esta por se sentir desconfortável no seu círculo de amigos e por isso obrigada a encobrir a ‘marca’, da sua impureza. Para desvendar todo o mistério e na tentativa de se tratar, Mari vai a uma clínica onde Melissa está supostamente hospitalizada e acaba por encontra-la.

Medusa
Um estranho tom de comédia musical satírica, sombria, atemorizante, conflituosa e violenta.

Neste sentido, ‘Medusa’ torna-se igualmente num embrenhada viagem de descoberta juvenil, numa história de terror psicológico, sobre uma menina que começa afastar-se da sociedade conservadora e fechada da qual participa, para começar a ver não apenas como as pessoas vivem fora dela, mas também a observar os problemas gerados por ter que conviver com um aparato repressivo que ela própria representa e sustenta: a igreja e o seu exército repressivo, que está por detrás trás. A metáfora pode parecer subtil, mas para quem conhece o Brasil da actualidade, acaba por ser bastante directa em relação à guinada deste País, para a extrema-direita, com Bolsonaro – militar, religioso, conservador, homofóbico – e os seus ‘bolsemiones’. São ideais menos pop e coloridos, dos que o do filme de Anita Rocha da Silveira — este mais rosa e menos verde e amarelo — mas não menos absurdos e aliás conceptualmente são bastante idênticos.

Medusa
‘Medusa’ tem o mesmo das várias comédias liceais norte-americanas, todas elas muito semelhantes.

O filme é aliás bastante colorido e rosáceo de início, mas acaba por escurecer aos poucos na segunda metade, trocando, aquele divertido e estranho tom de comédia musical satírica, por uma história mais sombria, atemorizante, conflituosa e violenta. Pouco a pouco os segredos dos protagonistas vão sendo revelados — neste ponto da descoberta, o filme tem alguns pontos de construção, semelhantes a ‘Luca’, (2021), o filme de animação da Disney — ao mesmo tempo que o aspecto visual vai-se tornando, mais sombrio em relação ao que se vai descobrindo; por outro lado torna-se igualmente esperançoso quanto a uma possível solução, para o conflito que passa obviamente pela ‘libertação’ de Mari e o desagregar deste estranho grupo de fanáticas. Anita Rocha da Silveira oferece-nos ainda uma diversidade de opções de realização bem interessantes, no que diz respeito à fotografia, música e design de produção, que estão mais próximos da ficção científica ou dos filmes de terror, mais do que de um qualquer ensaio ou drama convencional de denúncia política-religiosa. Neste aspecto, ‘Medusa’ permanece e sustenta-se até à última imagem, sobretudo neste nível radical de combinação de géneros cinematográficos. Quanto à sua mensagem e à  sua metáfora do Brasil da actualidade, podem ser subtis,  mas nesse sentido, ‘Medusa’ é um filme muito, muito poderoso. Aguardemos a estreia em breve nas salas de cinema, porque visualmente e num grande ecrã torna-se muito mais interessante!

JVM

Medusa, em análise

Movie title: Medusa

Movie description: Em ‘Medusa’, da brasileira Anita Rocha da Silveira, um gangue de raparigas fanáticas religiosas que fazem tudo para controlar o seu redor — até mesmo outras mulheres — para resistirem às tentações da carne. Mas o dia chegará em que a vontade e o desejo vão sobrepor-se à fé. 

Date published: 1 de May de 2022

Country: Brasil, 2021

Duration: 127'

Director(s): Anita Rocha da Silveira

Actor(s): Mari Oliveira, Bruna Linzmeyer, Thiago Fragoso, Lara Tremouroux

Genre: Ficção, Drama, Terror, Suspense.

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  • José Vieira Mendes - 85
85

CONCLUSÃO

‘Medusa’ de Anita Rocha da Siveira, é tão influenciado pelos mitos gregos, quanto pelas comédias adolescentes norte-americanas, tão inspirado nos filmes de David Lynch ou de Dario Argento, quanto nos musicais da off-Broadway. Trata-se de um filme tão estranho e raro quanto o personagem mitológica a que se refere. É uma obra aberta a várias possibilidades, enigmática e sugestiva tanto como a mulher do mito, com cobras no cabelo. Anita Rocha de Silveira como que reinterpreta e actualiza essa história mitológica para o Brasil de hoje – conservador, bolsonarista, evangélico, repressivo – mas tingindo-a com as cores neon pop dos musicais dos anos 80, criando um mundo muito distante do real, mas, ao mesmo tempo, anda muito perto da realidade brasileira.

Pros

É excelente, a ideia de montar uma espécie de ópera pop, estranha e intrigante atacando as políticas sociais e culturais e, principalmente, a misoginia do Brasil da actualidade, pelo menos no seu discurso bolsonarista, político e oficial.

Cons

Talvez uma duração um pouco mais curta (127 minutos parece-me demais e demasiado esticado) tornaria  ‘Medusa’ um filme bastante mais eficaz na sua mensagem total. 

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