ArteKino '18 | 24 Weeks, em análise

ArteKino ’18 | 24 Weeks, em análise

24 Weeks” é um audaz drama alemão que retrata os dilemas de uma mulher a ponderar a possibilidade de ter um aborto num estado avançado da gravidez. Este filme é uma das muitas joias de cinema europeu disponibilizadas gratuitamente pela plataforma online Festival ArteKino.

Devido a restrições temporais, às exigências comerciais que ditam o que é distribuído e o que nunca sai do circuito dos festivais, devido a uma ideia generalizada que vê o espectador como alguém que só quer ser entretido ou ver suas opiniões confirmadas no grande ecrã, o cinema tende a tentar sempre responder a questões complicadas com a resposta mais simples possível. Ambiguidades e ambivalências são vistas como afetações pretensiosas de cineastas mais interessadas em congratularem a sua mesma ambição artística que a dialogar com a audiência. “24 Weeks” da alemã Anne Zohra Berrached é uma obra que rejeita tais dogmas e vê na falta de uma resolução simplificada todo o valor do exercício cinematográfico.

O filme retrata os dilemas de Astrid, uma comediante alemã de sucesso que, quando a conhecemos no início da narrativa, está grávida do seu namorado com quem já tem uma filha. Tal como muitos outros profissionais da comédia, especificamente do stand-up, Astrid está sempre pronta a minar a sua vida em busca de matéria-prima para o espetáculo e o facto da sua gravidez é conhecimento público. Tal facto poderia ser inócuo fosse esta uma gravidez normal, mas Astrid é repentinamente informada que, segundo os resultados de uma série de testes, seu bebé irá sofrer de Síndrome de Down.

24 weeks critica artekino
Um retrato complexo e impiedoso de um dilema complicado sem respostas fáceis.

Apoiados numa série de códigos morais jamais testados pela vida, Astrid e o namorado automaticamente aceitam que irão criar um rapaz com Síndrome de Down. Contudo, não demora muito até que o advento da dúvida se manifeste, pelo menos na mente da mulher cujo corpo serve de incubadora a uma futura vida. Numa visita a um grupo comunitário de pessoas afetadas com a doença, é imediatamente percetível que a filha pequena da comediante olha tais figuras com medo e apreensão, uma opinião que só é sublinhada quando próprios membros do círculo de família e amigos do casal revela o seu nojo pela possibilidade de tal vida ser trazida ao mundo.

Astrid tem acusações de fascismo na ponta da língua, o que num contexto germânico tem particular peso histórico e cultural. Afinal, não é este um país que outrora viu o extermínio de pessoas afetadas por tais “imperfeições” genéticas como uma das muitas chacinas necessárias para um mundo melhor? O próprio filme informa-nos que, na posição de Astrid, 90% das mulheres alemãs escolhe o aborto, um dado que nunca é discutido publicamente, um tema para conversas sussurradas que nunca podem ser feitas em voz alta. Face às reações heterogéneas dos seus entes queridos, face à realidade assustadora de criar um indivíduo com Síndrome de Down e outros dilemas que tais, Astrid começa a considerar vivamente se não será uma boa escolha pertencer também ela a essa estatística.

Um de muitos problemas enfrentados por ela manifesta-se em consequência da sua posição enquanto figura pública. Do dia para a noite, um comentário na rádio por parte de uma colega desbocada torna Astrid num exemplo nobre de uma futura mãe que decide enfrentar as adversidades de criar um filho com uma doença assim ao invés de por fim à gravidez. Na expetativa pública não há espaço para dúvida e ambivalência na figura de Astrid e até na mente do seu namorado tais ambivalências são chocantes. No meio das pessoas que a rodeiam, a mãe da comediante parece ser a única com alguma perceção dos horrores que flagelam a cabeça da mulher grávida com um filho que se calhar já não deseja ter.

Pela sua parte, a realizadora jamais sugere qual a resposta correta às questões levantadas pela sua narrativa. Nem mesmo chegado o fim do filme é possível entender qual a opinião final da cineasta sobre a questão de uma gravidez assim, se é correto abortar ou se é correto completar a gravidez. A única certeza que parece emanar do objeto cinematográfico de “24 Weeks” é uma ideia que tais problemas da vida não são facilmente resolvidos sem danos colaterais e que a dúvida é uma constante inevitável, mesmo depois de uma escolha ser feita. Tal abordagem implica uma distância entre espectador e personagens, uma severidade clínica que a cineasta conjura sem, no entanto, fazer do filme uma experiência fria ou desprovida de empatia para com Astrid.

24 weeks critica artekino
Julia Jentsch é sublime no papel principal de uma comediante a ponderar a possibilidade de um aborto.

De facto, é difícil imaginar um filme que respeite mais a dignidade e autonomia mental da sua protagonista que “24 Weeks”. Interpretada por Julia Jentsch e filmada por Berrached, Astrid é uma mulher complicada que ao longo da história vai perdendo a capacidade de pensar em binários e ter certeza das suas decisões, afogando-se progressivamente na complexidade dos seus problemas. No entanto, é também alguém capaz de erguer a cabeça acima da água e sobreviver à tormenta que o fado lhe guardou, mesmo quando a sua resiliência se manifesta sob a forma de comportamentos abrasivos, da rejeição do auxílio de quem mais a ama e da compaixão piedosa de quem a admira de longe, mas não a conhece realmente. Trata-se de uma caracterização de feroz ambição psicológica que nunca exige a simpatia do espectador ao mesmo tempo que demanda o seu respeito.

Desdobrando-se em várias cenas tingidas em tons de azul e cinza num registo de plácido realismo europeu, “24 Weeks” não é o mais audaz exercício estético. Contudo, a franqueza com que confronta seus polémicos temas e a honestidade com que retrata procedimentos médicos, protocolos legais e a genuína complicação psicológica de uma mulher numa posição infernal conferem ao projeto o mérito de uma proposta revolucionária. Meryl Streep, então presidente do Júri da Berlinale, felicitou a equipa de “24 Weeks” após ver o filme, mas avisou-os que um filme assim nunca seria distribuído nos EUA. Suas palavras proféticas foram confirmadas pela passagem do tempo e ausência de grande distribuição comercial do filme fora do seu país de origem, o que em si é um testamento aos riscos que Berrached está desposta a enfrentar e à sua admirável recusa em simplificar o que nunca devia ser simplificado.

24 Weeks, em análise
festival artekino 24 weeks critica

Movie title: 24 Wochen

Date published: 28 de December de 2018

Director(s): Anne Zohra Berrached

Actor(s): Julia Jentsch, Bjarne Mädel, Johanna Gastdorf, Emilia Pieske, Maria Dragus, Karina Plachetka, Sabine Wolf

Genre: Drama, 2016, 103 min

  • Cláudio Alves - 85
85

CONCLUSÃO

“24 Weeks” é uma valiosa exploração dos dilemas de uma mulher a encarar um dilema sem soluções fáceis. Um argumento complexo, cheio de empatia e respeito, que é elevado por um elenco capaz de dar vida a personagens tridimensionais que são tão emocionantes como abrasivas.

O MELHOR: A prestação de Julia Jentsch. O facto que a atriz não ganhou o prémio de melhor Interpretação na Berlinale de 2016 é algo difícil de engolir.

O PIOR: As tonalidades azuladas da fotografia e a geral falta de audácia formalista por parte de uma realizadora que não tem falta de coragem no que diz respeito a temas e argumentos.

CA

Sending
User Review
4.5 (2 votes)
Comments Rating 0 (0 reviews)

Leave a Reply

Sending