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73ª Berlinale | Someday We’ll Tell Each Other Everything

‘Someday We’ll Tell Each Other Everything’, da cosmopolita realizadora Emily Atef, é um drama de suprema elegância e erotismo, que conta a história de uma jovem de 19 anos que se envolve num relacionamento obsessivo com um homem mais velho, passado na Alemanha, logo após a Queda do Muro de Berlim.

‘Someday We’ll Tell Each Other Everything’, de Emily Atef, é um surpreendente ensaio de romantismo alemão no cinema, carregado de erotismo e sensualidade. É um filme baseado num romance de Daniela Krien, publicado em 2011, e que a escritora co-adaptou com o realizadora Emily Atef. Este projecto marca também o regresso desta franco-iraniana, nascida na Alemanha, à Competição da Berlinale. Foi aqui que Atef com ‘3 Days In Quiberon’, sobre a actriz Romy Schneider, se estreou em 2018, lançando-se depois no panorama internacional dos festivais. ‘Plus Que Jamais’, um filme também no feminino, protagonizado pela bela germano-luxemburguesa Vicky Krieps e pelo falecido actor francês Gaspar Ulliel, (1984-2022), estreou o ano passado no Festival de Cannes 2022. Este novo filme de Atef, é novamente um drama intimista que atinge um extraordinária riqueza e beleza românticas, especialmente porque insiste em contar uma história inteligente a partir da perspectiva do desejo feminino.

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Someday We’ll Tell Each Other Everything
ficamos a desejar a bela e talentosa Marlene Burow, uma verdadeira estrela em ascensão. ©73ª Berlinale

‘Someday We’ll Tell Each Other Everything’ trata-se, em primeiro lugar, de uma história de amadurecimento tanto para a sua protagonista Maria (Marlene Burow), quanto para o seu país, a Alemanha de 1990, antes dividida e que inicia uma difícil transição de uma era para outra: a modernização e unificação. O cenário é o interior da Turíngia, na antiga Alemanha Oriental, em 1990, durante o primeiro verão após a Queda do Muro de Berlim (1989). Maria deveria estar na escola, mas decidiu ficar longe dela porque a confusão é grande, mas também durante um período difícil na vida da sua família: o pai fugiu para o Oeste e já tem outra família e a mãe Hannah (Jördis Triebel) está deprimida em casa, pois também perdeu o emprego, porque a sua empresa fechou como resultado direto da unificação da Alemanha. Maria e sua mãe afastam-se devido à incerteza e do momento crítico, que vive essa parte da Alemanha de Leste. Maria mora não muito longe da sua casa, com uma adorável família de agricultores, à qual pertence Johannes (Cedric Eich), o seu jovem e dedicado namorado, um aspirante a fotógrafo. Enquanto vai desfrutando de um intenso e juvenil sexo com Johannes, Maria mergulha na leitura de ‘Os Irmãos Karamazov’, de Dostoiévski — de onde vem aliás, a citação que dá título ao filme. Mas a rapariga, bem podia ter já lido O Amante de Lady Chatterley’ ou outra das obras eróticas de D.H. Lawrence.

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Paralelamente, Maria sente-se perturbada com Henner (Felix Kramer), um taciturno vizinho da família, um solitário proprietário rural, dono de cavalos e de dois Rottweiler, considerado um mulherengo e um tipo de mau feitio. No entanto, a diferença de idade de 21 anos entre Maria e Henner não os impedirá de se envolverem numa relação escaldante, tempestuosa e intensamente física. Enquanto isso, a transição histórica percorre todo o drama, seja marcada no súbito reaparecimento do tio de Johannes, que regressa do Ocidente no seu Mercedes Benz, de férias para visitar a família de origem e trazendo à tona o ressentimento dos moradores do interior do leste, que ainda não podem experimentar as maravilhas do capitalismo ocidental; ou também no projecto fotográfico de Johannes de documentar a sua comunidade, sabendo que o mundo onde cresceu, vai desaparecer rapidamente.

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Someday We’ll Tell Each Other Everything
Felix Kramer em Henner, traz uma extraordinária expressividade e complexidade ao seu personagem. ©73ª Berlinale

Numa época em que o cinema está cada vez mais propenso a dar espaço ao conteúdo sexual, o filme de Atef aborda o tema do desejo-tabu, com uma destemida franqueza e sensualidade: um relacionamento inapropriado, não apenas devido à diferença de idade, mas também pelo facto de Henner ser bruto e áspero, algo que curiosamente parece atrair ainda mais a jovem Maria. As cenas de sexo são cruéis e demonstram um enorme talento de Burow e Kramer na interpretação das mesmas — há muito mérito certamente de Sara Lee, a coordenadora de intimidade, técnicos cada vez mais utilizados no cinema — mas também graças à sensibilidade da realização de Atef, que mantém um firme controlo e dá primazia à nova e ousada experiência de Maria, com um homem muito mais velho e bruto. O clima de verão, por vezes idílico e por vezes sinistro, também ajudam, além de ser lindamente captado pela direcção de fotografia de Armin Dierolf: do brilho dourado da pele nua, aos exteriores magníficos, com a cor do feno dos campos, aos céus carregados de nuvens, que parecem pinturas de paisagens. As interpretações são notáveis nomeadamente a de Jördis Tiebel (‘Babylon Berlin’), no papel da mãe preocupada com Maria; e a de Felix Kramer (‘Dogs of Berlin’), em Henner, trazendo uma extraordinária expressividade e complexidade à sua personagem. Marlene Burow brilha incrivelmente no exigente papel de Maria, algo que nos desafia também a criar uma certa empatia com uma personagem, embora as suas reações e motivos sejam quase sempre problemáticos, contraditórios, mas sempre delineados com um pincel muito fino. Algum dia contaremos tudo um ao outro é efectivamente o mote no filme, mas no caso de Maria, as ressonâncias vão ser de alguma forma trágicas ou traumáticas. Não sendo uma obra prima, vale a pena ver ‘Someday We’ll Tell Each Other Everything’, um filme emocionalmente e eroticamente intenso, elegantemente trabalhado e sobretudo muito bem interpretado por todos os actores tanto que ficamos a desejar a bela e talentosa Marlene Burow, uma quase estreante que já é uma verdadeira estrela em ascensão. Veremos!

JVM, em Berlim

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