Uma comédia romântica protagonizada por Peter Dinklage, Anne Hathaway | ©73ª Berlinale

73ª Berlinale | She Came To Me: Os Viciados no Amor

É muito difícil resistir ao maravilhoso romantismo de ‘She Came To Me’, de Rebecca Miller, o filme que abriu a Berlinale 2023, encarnado por atores fabulosos e que opta por seguir um registo fora dos clichés da comédia romântica de Hollywood. Não podia haver melhor maneira de começar um festival!

A 73ª Berlinale abriu de uma forma inesquecível, com ‘She Came to Me’ (fora de competição), da realizadora e argumentista Rebecca Miller (‘A Vida Íntima de Pippa Lee’), uma comédia romântica que mostra a vida como ela é, protagonizada por Peter Dinklage, Anne Hathaway e sobretudo por uma bela e luminosa Marisa Tomei. O filme é baseado em muitos dos conflitos reais das sociedades ocidentais — a crise do casamento, a descriminação racial ou de género, o machismo, as desigualdades sociais, as problemática dos adolescentes no seio da família e no seu natural crescimento para a vida adulta — mas também fala das arte da crise criativa, da liberdade de expressão, dos preconceitos e sobretudo das possibilidades que a vida e o amor nos proporcionam, para se estamos no caminho errado, poder começar de novo. ‘She Came to Me’ é no fundo uma encantadora comédia sobre o amor em todas as suas formas, vertentes, idades e expectativas (e transcendências), que une as histórias de várias personagens que vivem as suas histórias de amor, na cidade de Nova Iorque e nas águas da baia do Rio Hudson.

She Came To Me
O compositor Steven Lauddem (Peter Dinklage) vai passear o seu bulldog, em busca de inspiração. ©73ª Berlinale

O compositor Steven Lauddem (Peter Dinklage) está com um bloqueio criativo e não consegue terminar a partitura musical da sua próxima ópera contemporânea — há aqui uma certa ideia e visão da obra do grande encenador texano Robert Wilson, como verão depois aqueles que o reconhecem — que significará retorno à ribalta. Seguindo os conselhos da sua esposa Patrícia (Anne Hathaway), que antes fora sua terapeuta, antes de viverem juntos — este vai passear o seu bulldog, em busca de inspiração. Porém o que encontra é muito mais do que esperava ou jamais imaginou e que vai mudar completamente a sua vida, tanto do ponto de vista criativo como pessoal. Como se não bastasse, a excêntrica trama do encontro entre um compositor de ópera (Dinklage) em crise criativa e uma exuberante capitão de um rebocador (Tomei), do Rio Hudson, com queda para o romantismo exacerbado e histórias de amor, Rebecca Miller lança-nos também no universo de uma famosa psiquiatra-terapeuta (Hathaway), obsessivamente influenciada pelas agonias de um episódio religioso ou transcendental, um ultraconservador estenógrafo (Brian d’Arcy James) — ‘modelo trumpista’, mas nunca referido — promotor de encenações históricas de momentos da Guerra da Sucessão, casado com uma imigrante polaca, que trabalha como mulher-a-dias (Joanna Kulig). Trazendo equilíbrio e sentido às facetas destes adultos repletos de paranóias, neuroses, obsessões e preconceitos, estão os dois filhos adolescentes das respectivas famílias e profundamente apaixonados: Tereza (Harlow Jan) e Julian, (Evan Ellison),  que estão mais ‘limpos’, muito mais conscientes, lúcidos e sábios, do que todas as outras personagens, que os rodeiam. É nesta mistura aparentemente disforme que assenta esta sexta longa-metragem da argumentista e realizadora, filha do dramaturgo Arthur Miller e casada com o grande Daniel Day-Lewis, a quem não ficaria mal também o papel do compositor em crise criativa. Porém, a interpretação, o carisma e a expressão de Peter Dinklage, fazem esquecer o seu tamanho, além de dar sentido, graça e improbabilidade ao argumento. Graças à surpreendente alquimia de um elenco impressionante, Rebecca Miller consegue entrelaçar vários destinos, histórias e coincidências, às suas personagens como se fossem uma complexa e sofisticada criação operática, mas agora baseada numa combinação de comédia clássica, com um conturbado romance da época do romantismo literário.

She Came To Me
‘She Came To Me’, de Rebecca Miller, com Peter Dinklage em crise criativa. ©73ª Berlinale

‘She Came To Me’, trata-se aliás comparativamente de uma espécie de Romeu e Julieta, dos tempo modernos, ambientado no cenário de uma América dividida entre ricos e pobres, entre classe média baixa e a elite cultural, num tom de uma balada folclórica que, vista através do meio de representações de ópera contemporânea, lança a sua própria narrativa, numa perspectiva mais elaborada e que vai culminar num brilhante e lindíssimo tema de Bruce Springsteen, — feito propositadamente para o filme — que tem mais ou menos como refrão ‘sou um viciado no romantismo’, no genérico final. Portanto não saiam da sala, antes de este terminar! Tal como a Capitão Katrina (Tomei), foi aconselhada pelo seu terapeuta a abster-se de ver filmes românticos, ‘She Came to Me’ proporciona-nos uma ótima oportunidade para contrariar também o seu vício e também o preconceito que os festivais de cinema têm, em selecionar comédias para as suas competições. Como se o mundo fosse só tristezas e tudo sempre acaba mal! As personagens, concebidas por Rebecca Miller, são fabulosas e são encarnadas por atores fantásticos, que nos fazem efectivamente acreditar nesta ode mágica e ao mesmo tempo realista, à liberdade de expressão, ao romantismo e ao amor. Fabuloso, bem disposto, She Came to Me’ foi a melhor maneira de começar esta Berlinale 2023, pena é que não esteja como os outros 16 a concorrer ao Urso de Ouro. Já me esquecia, de facto, por vezes o amor vem ter connosco!

JVM, em Berlim

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