74º Festival de Cannes | ‘Benedetta’, um filme do Dildo.
Com ‘Benedetta’, o retrato de uma freira lésbica, mística e beatificada, o velho Paul Verhoeven quer continuar a quebrar tabus e a dividir as nossas opiniões em pleno festival. ‘Benedetta’ é um filme barroco e provocador, à moda antiga, para uma sessão da meia-noite. Mesmo com a bela Virginie Efira, a fazer de ‘Benedetta’, acho que continuo a preferir o ‘Robocop’!
Com ‘Benedetta’, é a terceira vez que Paul Verhoeven está na competição do Festival de Cannes. E pela terceira vez parece mais uma vez, querer dividir a crítica no festival. O seu filme é baseado no livro ‘Atos Impuros – A Vida de Uma Freira Lésbica na Itália da Renascença’, da historiadora norte-americana Judith C. Brown, que conta a história verdadeira de Benedetta Carlini. Benedetta foi uma freira italiana, do século XVII, que fez parte de um convento na Toscana desde sua infância. Na verdade, a freira sofria de um distúrbio psíquico, tinha perturbações e visões religiosas eróticas. Carlini foi ameaçada, da fogueira, por causa da sua relação com a sua ajudante-noviça, se transformar num conturbado romance amoroso, ainda por cima em tempo de peste. Esta é a lenda, mas o ‘Benedetta’, de Paul Verhoeven, anda lá perto, mas é outra coisa. Depois da sua editora de videogames de ‘Elle’ em 2019 (com Isabelle Huppert), que conseguiu superar, o seu estupro com insolência, aqui está mais outro, para dizer no mínimo, cenário explosivo da (pequena) história da Itália, desenterrado por este eterno rebelde que é Paul Verhoeven: a freira mística do século XVII, que existiu realmente e que concentra tudo o que ele ama de sulfuroso, ambíguo, amoral e de uma enorme vitalidade erótica. Crente irredutível e cruel, Benedetta, chega ainda criança ao convento da Toscana.
Uma enorme estátua da Virgem Maria, cai-lhe em cima, sem lhe fazer o menor arranhão. E aqui está um primeiro milagre da noviça, que parece quase uma anedota de crianças. 18 anos depois, começa uma história de amor à primeira vista entre duas mulheres, num convento. A mais velha, é a Irmã Benedetta (Virginie Efira), que toma sob sua proteção Bartolomea (Daphne Patakia), uma donzela selvagem, com olhos de gazela e lábios grossos, que escapou das garras do seu pai, um predador incestuoso. À miúda que nunca se tinha visto ao espelho, a Irmã mística, confidencia-lhe que é linda e manda-a sussurrando-lhe, reflectir-se nos seus olhos e a aproximar-se dela. As duas iniciam uma atracção mútua, e num abrir e fechar de olhos e na penumbra da cela, não tardam, estão enroladas em abraços carnais. Logo colocadas, num erotismo abrasador e escandaloso, como gosta Verhoeven.
Com tudo isso por isso, fica-se tentado a pensar que o realizador Paul Verhoeven estava a preparar-se para que ‘Benedetta’, fosse o centro das atenções, desta 74ª edição do Festival de Cinema de Cannes. ‘Benedetta’ é um coquetel de religião, sexo e violência, capaz de desencadear fantasias e confirmar o seu status de ‘cineasta provocador’, adquirido desde ‘Instinto Fatal’(1992). Mas quem se lembra por exemplo de ‘Delícias Turcas’ (1973)? Porém, para além dos seus aspectos supostamente escandalosos ou blasfemos, ‘Benedetta’, — uma longa-metragem que dura mais de 2 horas — é sobretudo um filme insuflado, veiculando em todos os clichês dos vários géneros (erótico, cavalaria, terror, gore, etc.) e que provoca mais risadas, do que choque, como aliás aconteceu na sessão de imprensa. Mas há quem goste e o veja como um ensaio de série B ou um filme aventureiro. Benedetta Carlini, como já se disse, ingressou no Convento dos Teatinos em Pescia, Toscana, aos 9 anos, adquiriu uma reputação de quase santidade, devido às suas visões de Cristo e aos estigmas nas suas mãos e pés (falsos ou verdadeiros?); e também graças ao que parece às suas decisões bastante terrestres, já como Madre Superiora, quanto à salvação da população quanto à peste: o confinamento, fechando as portas da cidade. Sede de poder não ou uma simples fanática, que contorna inteligentemente a sua fé, à sua vontade e desejos? Ou uma espécie de Joana D’Arc, italiana?
É esta a questão, que parece não ter interessado muito ao realizador nesta história da freira e que ele acaba mesmo por não responder no filme. Tanto ele, como a sua protagonista Virginie Efira (linda e às vezes, até faz lembrar mesmo a figura de Sharon Stone), não procuram de forma nenhuma explorar o psiquismo dessa mulher, que deve ter sido fascinante e bastante inteligente para a época, independentemente de ser — e ainda bem para ela — uma devoradora sexual. Verhoven ridiculariza ainda a Igreja através do personagem do núncio encarnado por Lambert Wilson ou da ‘comercial’ Madre Superiora, interpretada por Charlotte Rampling; a instituição maltrata e tortura os corpos das freiras, como a Inquisição.
O realizador, entrega-se mal às cenas de visões de Benedetta — aliás todas com um gostinho kitsch, que beira o grotesco e do ridículo — e culmina com uma cena de sexo, praticada por meio de uma estatueta da Virgem, esculpida em dildo — isto aliás de bastante mau-gosto, tendo em conta que a Virgem Maria é uma imagem artística — que supostamente causaria escândalo e chocaria os espectadores. O filme é, sobretudo, um meio para o cineasta se entregar novamente, aos seus excessos, que se tornaram, a sua marca registrada. Desse ponto de vista, Paul Verhoeven está exactamente, onde esperávamos que estivesse, porque o seu cinema é isso mesmo: às vezes melhor outras vez pior, como é o caso deste ‘Benedetta’. ‘Benedetta’ é efectivamente, um filme barroco e provocador, à moda antiga, bastante apropriado para uma pouco exigente sessão da meia-noite, mas nunca para fazer parte desta competição. Enfim, mesmo com Virginie Efira como protagonista, acho que prefiro o ‘Robocop’ (1987).
JVM