A Pior Pessoa do Mundo © Alambique / Screenings Funchal

74º Festival de Cannes (Dia 3): Julie em 12 Capítulos

O filme do dia da competição é sem dúvida ‘The Worst Person in the World’, do norueguês Joachim Trier. É o terceiro filme da sua trilogia sobre a cidade de Oslo. É mais uma comédia ácida, muito bem esgalhada, sobre o amor no nosso tempo, como é ter todas as oportunidades da vida e desperdiçá-las e, ao mesmo tempo sentir-se a pior pessoa do mundo.

O argumentista e realizador norueguês Joachim Trier (‘New Deal’ e ‘Oslo, 31 de Agosto’) estreou aqui a sua quinta longa-metragem The Worst Person in the World’, um filme muito interessante, uma ‘comédia-romântica alternativa’ com o qual nos identificamos de imediato. Quanto mais não seja por causa das travessuras de Julie, uma menina linda e má; ou porque fala das inquietações por que todos já passámos de uma forma ou de outra. Depois do seu ensaio de género fantástico com Thelma (2017), Trier, o da Noruega (não confundir com o outro) regressa à sua cidade, para contar a história da vida de Julie (Renate Reinsve) uma bela rapariga de 30 anos, que não sabe muito bem o que fazer da vida. Julie está prestes a fazer trinta anos e sua vida é uma verdadeira bagunça existencial e sentimental. Além de inteligente e bonita Julie vai desperdiçando, todo o seu talento e as boas oportunidades que a vida lhe proporciona, por causa das suas inquietações. O seu namorado Aksel (Anders Danielsen Lie), mais velho 10 anos, um ‘romancista gráfico’ de grande sucesso, começa a pressioná-la para que estabilizem a sua relação. Uma noite, Julie invade uma festa e conhece o jovem e charmoso Eivind (Herbert Nordrum). Em pouco tempo, Julie rompe com Aksel lança-se em mais um novo relacionamento, esperando por uma nova perspectiva para a sua vida. Mas aos poucos vai-se apercebendo, que algumas escolhas da sua vida, vão ficando para trás. Desta vez, Anders Danielsen Lie, o actor-fetiche de Trier desempenha o papel secundário, dando o protagonismo à vibrante Renate Reinsve, — que teve um pequeno papel em ‘Oslo, 31 de Agosto — e cujo personagem é a peça central deste drama-comédia (co-escrito, como de costume, com Eskil Vogt). Como uma tipa muito gira e inteligente, prestes a fazer 30 anos não sabe o que quer ou qual homem quer amar? As palavras do realizador ajudam as explicar as suas intenções: ‘Há muito tempo que queria fazer um filme sobre o amor, que vá um pouco mais longe do que as histórias de amor normais que vimos no cinema, onde tudo é tão simples, as histórias são tão definidas e, os sentimentos tão admiravelmente inequívocos. Este é um filme que olha seriamente para as dificuldades de encontrar alguém quando nós próprios estamos a lutar para descobrir o que queremos realmente da nossa própria vida; em como indecisas ou inconsequentes, se podem tornar as pessoas mais racionais e mais auto-confiantes deste mundo, quando se apaixonam; ou como é complicado, mesmo para os românticos, quando realmente conseguem o que sempre sonharam’.

THE WORST PERSON IN THE WORLD
The Worst Person in the World/Festival de Cannes ©

Porém, Renate Reinsve (Julie) interpreta um papel que já vimos em muitas comédias românticas de Hollywood, e há momentos que o filme segue mesmo nessa sentido, embora Trier tenha querido fazer algo de diferente. Dividido em doze capítulos, mais um prólogo e um epílogo, ‘The Worst Person in the World’ narra alguns dos anos cruciais na vida de Julie: desde o momento em que encontra e vai morar com Aksel, que é uma boa década mais velho, até como o seu relacionamento se desfaz devido a desejos conflitantes (ele quer ter um bebé, ela não); vidas profissionais são bastante desiguais (ele é muito bem-sucedido, pois cria histórias underground, aos quadrinhos, ela devido às suas permanentes inquietações acaba a trabalhar numa grande livraria); e o facto de Julie logo a seguir conhecer Eivind (Herbert Nordrum), que é tão despreocupado e indeciso quanto ela (o seu doce e improvável encontro acontece num casamento que ela fura), e, portanto, o oposto de Aksel. Mas Julie também é ‘a pior pessoa do mundo’, que parte corações, não se conformando apenas com as expectativas. Por outras palavras, Julie é culpada de não se decidir numa sociedade que espera que todos nós o façamos em algum momento da vida. E Trier infunde também no seu filme essa sensação de perda e desilusão que não pode ser desfeita de um momento para o outro. É preciso às fazer bater com a cabeça, par vera que estamos errados! A história pula para a frente e para trás, acelerando em partes e, em seguida, desacelerando para tomar novamente mais fôlego. Há uma cena genial, que mostra Julie tomando a decisão (aparentemente errada) de largar Aksel por Eivind, que faz lembrar Matrix: o resto do mundo pára ou melhor congela enquanto Julie corre pela cidade de Oslo, para saltar para os braços de seu novo amante. Mas há outras cenas brilhantes, incluindo uma em que Julie faz uma turbulenta viagem, depois de ter tomado cogumelos alucinógenos, tudo feito em câmera lenta e com efeitos de uma verdadeira ‘trip’. A banda-sonora de grandes sucessos de rock e folk (Harry Nilsson, Art Garfunkel, Todd Rundren) é fabulosa e termina ao ritmo brasileiro, que contrasta com os supostos frios sentimentos do Norte da Europa. Resumindo, Julie afinal não é tão má, quanto o título do filme, mas está muito longe de ser perfeita. Na verdade, o novo filme de Trier não é apenas sobre a Julie, é sobre todos nós e como aceitar as nossas imperfeições e seguir em frente (ou não).  Não há escolas de afirmação ou finais felizes na vida. Por vezes até há uma parte de tragédia como vamos ver no filme. Porém como Julie, todos temos de chegar à conclusão inevitável, sobretudo os mais jovens, de que é preciso conviver com todos os nossos erros e indecisões. 

VÊ TRAILER DE ‘LINGUI, LES LIENS SACRÉES’

Igualmente na competição estreou ‘Lingui, Les Liens Sacrés’, mais um belo filme do realizador do Chade, Mahamat-Saleh Haroun ( ‘Um homem qui crie’, foi o primeiro filme dessas origens a ser apresentado na competição e ganhou o Prémio do Júri, em 2010). Esta é a oportunidade para o realizador que já foi Ministro da Cultura, para abordar um tema tabu no seu país: o aborto, num país de religião oficial muçulmana, onde esta prática é proibida tanto do ponto de vista legal, moral e religioso. No fundo, ‘Lingui, Les Liens Sacrés’ é uma grande homenagem às mulheres do seu país e à sua vida de um sacrifício quase marginal, numa sociedade em que os homens e que mandam e as mulheres são descriminadas em todos os sentidos. Mas que apesar de tudo se mantêm unidas e solidárias, numa entre-ajuda, como uma forma de luta contra a desigualdade. É notável a simplicidade da realização e o trabalho extraordinário das actrizes, entre profissionais e estreais na representação.

VÊ TRAILER DE ‘THE VELVET UNDERGROUND’

Depois de ter apresentado aqui em Cannes, o saudoso Velvet Goldmine’ (1998), a verdadeira e talvez a melhor homenagem de sempre a David Bowie —isto a propósito do falhado ‘Stardust’, agora estrado; e de dirigir Cate Blanchett em I’m Not There, o pouco convencional biopic sobre Bob Dylan, o realizador norte-americano Todd Haynes (Carol), regressa à sua paixão pela música. Desta vez com um excelente documentário, apresentado fora da competição, mas imperdível, sobre as raizes musicais, sociológicas e culturais — sobretudo a ligação à The Factory de Andy Warhol — que deram origem à famosa banda nova-iorquina ‘The Velvet Underground’, formados em 1964,. O filme mistura imagens (e vozes) de arquivo e entrevistas dos principais membros do grupo: Lou Reed ou Nico e John Cale, Sterling Morrison ou da baterista Mauren Tucker, deste  numa história que terminada a banda de vanguarda e experimental, seguiram cada um por  si o seu percurso musical. 

JVM

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