75º Festival de Cannes | ‘A Mulher de Tchaikovsky’

A competição de Cannes 75 começou hoje com um filme e uma história terrível, ‘A Mulher de Tchaikovsky’, do russo Kirill Serebrennikov, um mosaico biográfico contado pela esposa, que revela outro lado da vida do compositor: a sua suposta homossexualidade.

‘A Mulher de Tchaikovsky’, do realizador, encenador e dissidente russo Kirill Serebrennikov (‘Febre Petrov’, 2021), era um dos filmes mais aguardados do 75º Festival de Cannes, até porque é um dos artistas internacionais do momento em França: vai abrir igualmente o Festival de Teatro de Avignon, em julho próximo, com a sua nova produção teatral. Kirill Serebrennikov, esteve vários anos em prisão domiciliária em Moscovo. Está agora radicado em Berlim e veio a Cannes, para apresentar este seu novo filme, ‘A Mulher de Tchaikovsky, já que não o pôde fazer aquando da estreia do seu delirante ‘Febre Petrov’, na competição no ano passado, nem a de ‘Verão’, em 2018.

75º Festival de Cannes

‘A Mulher de Tchaikovsky’, o primeiro dos 21 da competição oficial, tornou-se também de certo modo uma obra incómoda para abrir o concurso e sobretudo para a ideologia do regime russo. Narra um significativo episódio da intimidade do grande compositor, que é uma das suas ‘vacas sagradas’ da cultura russa: Tchaikovsky casou-se supostamente com Antonina Miliukova, para esconder sua homossexualidade; e na Rússia, Tchaikovsky é quase um património, que não teve vida privada, aliás como a de Tchekhov, Dostoiévski ou Tolstói, uma intimidade que permanece quase desconhecida para a maioria dos russos e para muitos melómanos.  Um dos muitos casos em que a obra é maior que a vida!

VÊ TRAILER DE ‘A MULHER DE TCHAIKOVSKI’

Neste seu novo filme, ‘A Mulher de Tchaikovsky’, Kirill Serebrennikov dirige um profundo retrato da vida de Piotr Ilyich Tchaikovsky, não pelos olhos do compositor ou de um dos seus biógrafos oficiais, mas antes através da mulher com quem se casou, a infeliz e obsessiva Antonina Milioukova, tentando esconder sua homossexualidade e proteger a sua família da aristocracia. Essa união conjugal, embora tenha durado apenas três meses, continua a ser um episódio sensível e quase desconhecido da vida de Tchaikovsky, que como vemos no filme, mergulhou depois numa longa depressão, que o levou até a tentar o suicídio. Se ideia era seguir uma versão oficial da vida do compositor, o compositor recusa-se igualmente em entrar em qualquer tipo de sensacionalismo ou cenas quentes. Pelo contrário mostra que em parte essa tumultuosa e obsessiva relação com Antonina tornou-se uma fonte de inspiração para algumas das suas extraordinárias obras e em particular para sua ópera ‘Eugene Onegin’, que segue paralelamente e em parte o seu drama pessoal. Marcado por uma fotografia escura à boa maneira da ‘escola russa’, o filme de Serebrenniko é bastante competente, em boa parte também graças às interpretações do par de protagonistas: Odin Lund Biron (Tchaikovsky), o actor norte-americano radicado na Rússia, que deixou os EUA em março passado a seguir à invasão da Ucrânia; e sobretudo a jovem actriz russa Aliona Mikhailova que é absolutamente incrível no papel da infeliz e indesejada Antonina Tchaikovsky. Embora a homossexualidade de Tchaikovsky ja fosse conhecida há bastante tempo, só em 2018 foram publicadas pela primeira vez e sem censura, passagens de algumas das suas cartas e correspondências, que expuseram a sua mágoa e os seus desejos por homens. Recorde-se que há 50 anos, já dois filmes contaram a vida do grande compositor russo: ‘Tchaikovsky’ (1970), um filme biográfico ainda da era soviética realizado por Igor Talankin e ‘Tchaikovsky, Delírio de Amor’, de Ken Russell, de 1971.

JVM, em Cannes

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