'Firebrand'/© Karim Aïnouz

76º Festival de Cannes | ‘Firebrand’: O Jogo da Rainha

‘Firebrand’, a primeira longa-metragem em inglês do realizador brasileiro Karim Aïnouz é filme histórico que parece à primeira vista, estar fora dos temas do habituais dos seus filmes. Com Jude Law e Alicia Vikander é uma filme visualmente poderoso e feminista.

Podia ter sido melhor a estreia do talentoso realizador brasileiro Karim Aïnouz (‘A Vida Invisível de Euridice Gusmão’), na Competição de Cannes 76 e na sua longa-metragem em inglês intitulada ‘Firebrand’. Mas foi eficaz na sua subtil mensagem femeninista e anti-patriarcal. Trata-se de uma adaptação de ‘O Jogo da Rainha’, um romance de Elizabeth Fremantle, que faz uma retrospectiva livre da vida da sexta e última esposa de Henrique VIII. E abre logo com uma cartolina afirmando que a História só se conta através dos homens e da guerra, e que de resto é pura imaginação. E tem razão! O filme retoma os grandes momentos históricos do fim do reinado dos Tudor, desde o regresso do campo de batalha francês até à morte do Rei, procurando sobretudo dar corpo e alma à história da vida de da corajosa Catherine Parr: uma reformadora, um agitadora (como o título inglês ‘Firebrand’ sublinha), uma rainha que tenta sobreviver, como num jogo de xadrez mortal, numa Inglaterra agitada por uma crise de fé e um rei doente, com acessos de raiva paranóicos, que sabe que o seu fim está próximo; uma Rainha, que toma uma atitude passiva e conspirativa entre o seu marido, enlouquecido pela dor da sua perna ulcerada e o clima conspiratório que os cerca, com os homens da corte divididos entre o medo de serem decapitados e a ambição pessoal.

VÊ TRAILER DE ‘FIREBRAND’

Apesar de tudo Catherine consegue esconder a sua inteligente estratégia, sob um rosto impassível, uma força de vida e um espirito de sobrevivência, cuja compaixão não é excluída, sobretudo nas violentas cenas de sexo e abusos do Rei. Alicia Vikander, é a bela e sofisticada Rainha, e Jude Law, o Rei, um ogro monstruoso e gordo, que mostram  como os seus ventos são contrários e as suas atitudes variam entre a moderação e o excesso. Obviamente tudo isto conduz este filme a uma tragédia clássica das melhores que vimos no cinema e na televisão, imbuída de uma poderosa ambição visual e um trama complexa. De um aparente classicismo, pela sua vontade de reconstituir com precisão aquele tempo histórico, Karim Aïnouz impõe no seu filme uma visão de época que mostra tanto a subserviência e a violência dos homens da aquela época, ao mesmo tempo que consegue introduzir-lhe em pequenos flash, alguns temas prementes da contemporaneidade: a violência doméstica, a tolerância religiosa, as desigualdades sociais. Visualmente ‘Firebrand’, parece oscilar também entre as pinturas de Jan Van Eyck e Caravaggio, transformando sua heroína Catherine Parr num modelo pictório e na musa de uma rebelião que vai continuar por cinco séculos.

Festival de Cannes 2023
‘Firebrand’/© Karim Aïnouz

Se este novo longa-metragem nunca conseguiu ser tão envolvente e comovente quanto ‘A Vida Invisível…’ Karim Aïnouz  — aceitou quase uma encomenda — tenta a todo o custo não perder a sua alma de cineasta que dá voz às mulheres, dando aliás continuidade à sua longa-metragem de 2019: num filme histórico e de época o cineasta consegue manter os traços do seu cinema antipatriarcal. Dá assim para ver e compreender a loucura de um mundo que normaliza e neutraliza a violência contra as mulheres e dá a estas, mesmo que isso signifique combinar um pouco com a História (ou ‘imaginá-la’ como se recorda na cartolina de abertura), a oportunidade para ressoar através dos tempos a sua inteligência e o seu poder, embora que por vezes tenha de ser dessimulado. Através da câmera, de Aïnouz, a rainha Catherine Parr, torna-se assim numa heroína contemporânea e ‘Firebrand’, uma odisseia feminista.

JVM




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