©Nuri Bilge Ceylan/Festival de Cannes

76º Festival de Cannes | Dry Herbes e Auschwitz

Longe do esplendor hollywoodiano, a competição continuou com a apresentação de dois filmes de cineastas-autores conceituados: ‘Dry Herbs’, do turco Nuri Bilge Ceylan, um filme sobre desilusão dos ideais e ‘The Zone of Interest’, do britânico Jonathan Glazer, outra forma de olhar o Holocausto.

O cineasta turco Nuri Bilge Ceylan é presença assídua em Cannes e desta feita apresentou na Competição ‘Kuru Otlar Ustune’ (Les Herbes Sèches ou ‘Dry Herbs’), mais um filma na linha dos anteriores ou seja dramas torturantes, que oscilam entre a moralidade e a introspecção, como por exemplo o quase épico ‘Era Uma Vez na Anatólia’ (2011). Porém esta sua décima longa-metragem, aguardada como sempre com grande expectativa, marca também uma espécie de ruptura com o seu filme anterior, ‘Sono de Inverno’ (2014), sobre um casal de intelectuais com uma razoável diferença de idade, que ganhou aqui a Palma de Ouro 2014. Aliás o cineasta Nuri Bilge Ceylan, teve mais da metade dos seus filmes apresentados aqui em Cannes, premiados. Este seu novo drama ‘Dry Herbs’, localizado numa aldeia remota da Anatólia é mais uma ocasião para esta figura de proa do cinema turco perseguir a sua sempre paciente e meticulosa pintura do seu país. ‘Dry Herbs’, é aliás mais um filme sóbrio do ‘Bergman do Bósforo’, mas que nos surpreende sobretudo pela sua fotografia particularmente suave, que utiliza desta vez as técnicas de claro-escuro, cores e tonalidades exteriores, que parecem quadros de uma exposição de pintura ou fotografias a preto e branco.

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Festival de cannes 2023
Dry Herbs/©Nuri Bilge Ceylan

Samet (Deniz Celiloglu) é um jovem professor que foi colocado na Anatólia Oriental, aguarda há vários anos a sua mudança para Istambul. Ele mora com seu colega Kenan (Musab Ekici), um eterno solteirão e tímido que gostaria de encontrar o amor. As distrações são raras nesta região deserta de costumes e clima rigorosos, que conhece apenas duas estações, com uma passagem brusca do inverno para o verão (daí o título). Porém, uma série de eventos, uma acusação de assédio sexual a uma aluna, fazem com Samet perca a esperança de uma mudança de escola para a cidade e as suas ilusões em relação às suas ideais um tanto liberais. Até o dia em que conhece Nuray (Merve Dizdar), uma jovem professora como ele, que decerto modo acaba por influencia-lo e atraí-lo, sem saber muito bem até onde isso o vai levar.

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‘Dry Herbs’©Nuri Bilge Ceylan

Em ‘Uzak-Longínquo’, vencedor do Grande Prémio e dos respectivos prémios de interpretação no Festival de Cannes 2003, o realizador contava a história de um fotógrafo culto, citadino e desempregado, com relutância por Istambul; em ‘Dry Herbes’, o protagonista parece ir em sentido contrário, transformando-a numa cidade idealista, numa intrusa numa região rural e austera, sem nenhuns atractivos. Aí, as suas ambições diminuem, as ideias transformam-se em desilusões e os preconceitos fizeram aumentar o seu sentimento de exclusão, isolamento e egocentrismo. Contudo, são estas condições que proporcionam igualmente ao protagonista Samet, uma personalidade irritantemente narcisista, a possibilidade de cruzar-se com eventos e situações convidativas a uma reflexão sobre certos conceitos fundamentais, como o bem e o mal, o individualismo e o coletivismo, o amor e a amizade e ao mesmo tempo fazer a sua auto-análise. A beleza dos planos naturalistas de ‘Dry Herbes’ são inegáveis, e o cineasta não precisa mais provar que sabe captar a essência selvagem da natureza ou os rostos dos seus habitantes: Samet gosta aliás de fotografá-los de vez em quando no seu ambiente, para matar o tempo. Nas aulas, o professor tenta também proporcionar um pouco de calor humano aos alunos, com métodos que, no entanto, parecem pouco ortodoxos e que lhe trazem alguns dissabores: oferece um espelho de bolso encontrado por acaso, a Sevim (Ece Bagci), uma jovem adolescente da sua turma, que, de volta lhe dá grandes sorrisos e atenções. Esta história é também uma oportunidade para um duplo inventário, ilustrando tanto o desespero e a vida difícil dos habitantes destas áreas remotas, quanto os problemas do sistema educativo na Turquia.

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Festival de Cannes 2023
‘The Zon of Interest’ ©Jonathan Glazer

Quase dez anos depois de ‘Debaixo da Pele’, o realizador Jonathan Glazer regressou  a Cannes, com ‘The Zone of Interest’, o seu primeiro filme de época passado durante a II Guerra Mundial, com o Holocausto em fundo. Trata-se de um daqueles filmes que se vai desenrolando gradualmente, mas que mantêm sempre um tom envolto em mistério, proporcionando-nos, uma experiência verdadeiramente surpreendente, a começar pelo prólogo. Faz lembrar um pouco ‘O Laço Branco’, (2009), de Michael Hanneke, outro vencedor da Palma de Ouro 2009. ‘The Zone of Interest’ ganhou ainda mais relevo ontem à noite, com coincidência da notícia do falecimento do escritor Martin Amis (1949-2023), pois trata-se de uma adaptação muito livre do seu romance com o mesmo título. Rudolf Höss (Christian Friedel), um jovem comandante de Auschwitz e sua esposa Edwiges (Sandra Hüller), esforçam-se para construir uma boa vida com a sua pequena família numa casa com jardim e piscina, paredes meias com o Campo de Concentração. Quando uma mudança é imposta ao marido, pelas chefias militares nazis ameaça tudo o que construíram, Edwiges recusa-se estranhamente a deixar a casa dos seus sonhos. ‘The Zone of Interest’ é um filme incrível e uma proposta radical que não deixou ninguém indiferente, tanto pelo seu tema como pela sua forma: o filme adopta um contraponto sem precedentes sob o horror do Holocausto, ao mesmo tempo que ousa abordar o mais próximo possível a banalidade do mal, sem nunca curiosamente vermos os actores expressá-lo já que nunca aparecem em grandes planos ou algo de terrível se passe. É apenas a rareza de um sentimento de indiferença em relação ao horror. Raramente um filme sobre o Holocausto, alcançou este objectivo com tanta audácia visual e narrativa. ‘The Zone of Interest’ é uma obra difícil, intransigente e polémica, que deixa sem dúvida, o espectador sem palavras.

JVM




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