©Aki Kaurismäki/Festival de Cannes

76º Festival de Cannes | Les Feuilles Mortes: o cinismo da democracia

O cineasta finlandês Aki Kaurismäki, regressou à Competição de Cannes com ‘Les Feuilles Mortes’, uma brilhante (trági) comédia romântica e proletária. ‘Club Zero’ da austríaca Jessica Hausner, é um filme sobre as elites, uma sátira à imersão escolar, à meritrocracia e aos discutíveis fundamentalismo dos regimes alimentares alternativos, assentes no veganismo e sustentabilidade.

Com ‘Les Feuilles Mortes’, o cineasta finlandês Aki Kaurismäki, assina mais um novo capítulo da sua (trági) comédia humana. Trata-se da sua quinta longa-metragem sobre o tema desde ‘O Homem Sem Passado’, (2002) — quando havia assinado cerca de quinze filmes entre o início dos anos 1980 e 1999 — e o primeiro desde ‘O Outro Lado da Esperança’, (2017). Na sua longa-metragem anterior ‘Le Havre’ (2011), contou-nos uma comovente história de imigrantes. Regressa agora às personagens marginais finlandesas que vagueiam, pelos arredores de Helsínquia, em cenários de decadência, que parecem não ter mudado nada, desde os meados do século XX, numa obra poética que narra o encontro de duas almas perdidas e solitárias, que vagueiam por um subúrbio atemporal. E como a maioria dos seus filmes este ‘Les Feuilles Mortes’ foca-se em personagens que fazem parte do proletariado finlandês: o filme conta a história de Ansa (Alma Pöysti), uma caixa de supermercado em regime de contrato ‘zero hora’ — o trabalhador recebe pelas horas em que exerce as funções, sem direitos sociais e benefícios, nem indemnizações decorrentes de despedimento — e depois classificadora de plástico reciclável, e um homem apenas conhecido pelo apelido Holappa (Jussi Vatanen), sem primeiro nome, um jacteador de areia, alcoólatra, (depois ex-alcoólatra), que se cruzam acidentalmente e que, apesar das adversidades e desentendimentos, tentam construir um relacionamento amoroso ou o seu primeiro, único e último amor, no meio do lado mais sombrio e cínico do chamado ‘Estado Providência’, que caracteriza a sociedade na Finlândia.

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Festival de Cannes 2023
les feuilles mortes©Aki Kaurismäki

Os admiradores do cineasta finlandês não ficarão desapontados pois é um puro Kaurismäki! Até a atriz do filme, Alma Pöysti, é muito parecida com Kati Outinen, a musa do cineasta, que dirigiu em onze filmes. Este último leva-nos a uma Finlândia atemporal que o realizador filma com um estilo saído dos anos 1970. Mas, desta vez, vai mais longe pois ‘Les Feuilles Mortes’ é realmente muito mais engraçado do que a maioria dos seus filmes anteriores. Trata-se de um humor inexpressivo, contundente e desesperado, porque o quotidiano dos dois protagonistas, anónimos durante a maior parte do filme, não tem graça nenhuma. Encontramos a austeridade, um tema sempre caro a Kaurismäki, os tristes bares suburbanos, onde se bebe muito álcool por tudo e por nada, cercados por canteiros de obras e becos escuros com paredes frias. Com tal cenário, é fácil entender que os protagonistas (ou pelo menos um deles), prefiram ficar calados e afogar as suas mágoas no álcool. Mas o encontro desses dois tristes seres é de uma doçura imensamente tocante e de uma incrível e agridoce poesia. É extraordinário e de uma imensa alegria, no momento em que passámos já metade da competição de Cannes 76, poder desfrutar de um filme do finlandês, que é uma pequena parábola de amor e esperança (dura cerca 1h21), que às vezes nos diz muito mais do que um grande filme de autor. Ninguém filma o proletariado, os pobres e deserdados, com tanto talento e amor como Kaurismäki e nos faz ainda acreditar nas utopias e na humanidade. ‘Les Feuilles Mortes’ um longa-metragem bastante comovente, que certamente é um dos mais fortes candidatos à Palma de Ouro ou não fosse Aki Kaurismäki, uma das grandes referência de Ruben Östlund, o presidente do júri de Cannes 76.

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VÊ TRAILER DE ‘LES FEUILLES MORTES’

Os habituais do Festival de Cannes têm acompanhado o cinema de Jessica Hausner praticamente desde o seu início ou melhor da sua afirmação internacional. O seu filme de tese-escolar ‘Inter-view’ recebeu uma Menção Especial na Cinéfondation em 1999, a sua primeira longa-metragem ‘Lovely Rita’ foi selecionada para a secção Un Certain Regard em 2001, e a sua primeira entrada em Competição foi com ‘Little Joe’ (2019). A realizadora austríaca é mais uma vez candidato à Palma de Ouro com um  asséptico ‘Club Zero’. O filme passa-se num colégio-interno particular de elite do ensino secundário, em algum lugar e não sabemos quando, embora dê ideia de um futuro próximo, pelas roupas e ambientes futuristas. Recém-chegada à equipa de professores altamente qualificados, Miss Novak (a australiana Mia Wasikowska), oferece um novo tipo de curso de nutrição. Aos poucos os seus alunos tornar-se-ão seus seguidores e sob a sua influência, constituem-se no misterioso Clube Zero. O filme está aliás marcadamente fora do tempo, fora do espaço, algo acentuado pela escolha da língua inglesa, universal, e de um elenco internacional, onde está além da australiana, também a dinamarquesa Sidse Babett Knudsen, o egípcio Amir El-Masry e a francesa Elsa Zylberstein.

VÊ TRAILER DE ‘CLUBE ZERO’

Porém em ‘Clube Zero’, a realizadora Jessica Hausner parece querer continuar a questionar o nosso tempo com uma visão de um futuro asséptico, anómico e perigoso. No subtexto de seu filme, está por um lado a responsabilidade dos adultos em relação aos jovens adolescentes: a dos pais, que lhes dão tudo para serem os melhores, mas a quem falta o tempo para se dedicarem aos filhos; e por outro, a confiança delegada no corpo docente, muitas vezes desvalorizada, aliás um problema do ensino em geral mesmo na escola pública. Depois há uma sociedade que estabelece padrões de trabalho e sucesso, a tão falada agora meritocracia, que obriga toda a gente a trabalhar mais e a cada vez ser cada vez mais competitivo. E nesse sentido a influência dos pais é decisiva. Para reforçar esse desconexão com os pais, Jessica Hausner decide colocar os seus alunos nesse internato, para reflectir com questões dos adolescentes como a relação da comida, com a saúde, — comer conscientemente — elegância e o efeito de grupo. O problema do ‘Club Zero’ reside principalmente no seu tom de gozo em vez de levar a sério estas questões: a realizadora usa e abusa de um humor frio e doloroso numa sátira social com acentos absurdos — um estilo totalmente reivindicado pela história e pela encenação — mas esta opção parece injustificada. Digamos que as graças utilizadas estão ao serviço de uma moral pouco reactiva às contradições das ‘sociedades virtuais’ do século XXI e sobretudo à falta de comunicação, entre adultos e jovens (ou entre todos nós), às vezes até à distância de uma conversa Zoom.

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Clube Zero©Jessica Hausner

Porém, a execução do prometido no prólogo de ‘Club Zero’ não se desvia um milímetro durante os 100 minutos que dura o filme. A deriva para uma ideologia perigosa que inicialmente assume a forma de uma prática de ‘desenvolvimento pessoal’, a influência de uma figura de autoridade sobre um grupo de indivíduos, a desconfiança e depois a rejeição da ciência, são temas muito, mas muito actuais, que começam logo a ter efeito nos colégios e nas universidades, incutindo um certo espírito liberal e individualista nos jovens estudantes. Naquilo que imagina ser uma parábola da sociedade contemporânea, a realizador Jessica Hausner procura retratar os males que assolam o seu tempo, nomeadamente a falta de ideais de uma juventude que já não encontra motivos a que se agarrar. Um filme duro, às vezes agressivo e pesado, mas bastante interessante. 

JVM




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