'Perfect Days'/©Wim Wenders

76º Festival de Cannes | Um dia perfeito com Wim Wenders

O premiadíssimo realizador alemão Wim Wenders regressou em grande com o seu último filme, ‘Perfect Days’, um dos melhores filmes da Competição. Catherine Breillat com ‘Last Summer’, trás mais um filme na linha dos seus polémicos romances.

Wim Wenders foi um dos heróis da nossa cinéfila da década de 70 e 80, pelo menos no que diz respeito a filmes como ‘O Amigo Americano’ (1977) — baseado em outra das nossas heroínas da literatura, Patricia Highsmith‘Ao Correr do Tempo’, (1976) ou ‘O Estado das Coisas’ (1982) — rodado em Portugal. Mais tarde foi com ‘As Asas do Desejo’ (1987), um ficção que quase antecipava eminente queda do Muro de Berlim, dois anos depois, algo que revolucionou tudo no nosso mundo e nem os anjos escaparam. Não esquecer claro, essa viagem pela América profunda, que produziu uma das mais belas obras do cinema do século XX: ‘Paris, Texas’ (Palma de Ouro em Cannes em 1984). A partir daí o cineasta alemão teve uma carreira mais ao menos irregular (excepção para ‘Pina’, o documentário em 3D sobre Pina Bauch), acabando quase esquecido, até há pouco tempo, com um lugar honorífico de presidente da Academia Europeia de Cinema, da qual foi um dos fundadores.

VÊ TRAILER DE ‘PERFECT DAYS’

Aos 77 anos, Wim Wenders regressou em  de facto em grande, à Croisette — primeiro com o documentário ‘Anselm’, exibido fora de concurso, sobre um artista plástico Ansel Kiefer — e depois com este maravilhoso ‘Perfect Days’— o título de um tema do seu amigo Lou Reed, que é tocado no filme. Neste filme, que decerto é um dos mais fortes candidatos à Palma de de Ouro 2023, Wenders passeia-nos deliciosamente pelos viadutos, ruas e a lindíssima zona ribeirinha de Tóquio à noite, acompanhado as rotinas diárias e um ritmo ao tempo de um adorável e silencioso personagem chamado Hirayama (uma extraordinária interpretação de Koji Yakusho) o nome que é uma referência a ‘O Gosto do Saké’, o último filme de Ozu, de 1962.

Festival de Cannes 2023
‘Perfect Days’/©Wim Wenders

Hirayama é uma curiosa figura que tem a tarefa de limpar minuciosamente as estilosas casas-de-banho da cidade de Tóquio, que são diga-se autênticas obras-primas de tecnologia e design. A vida simples, metódica e organizada deste homem é-nos revelada através da música que escuta — uma verdadeira playlist de rock dos anos 80, que vão do álbum ‘Gloria’, de Patti Smith ao tema ‘House of the Rising Sun’, dos The Animals — no leitor de cassetes da sua carrinha azul; mas também dos belos livros (‘O Som e A Fúria’, de W. Faulkner) que lê e das fotografias que tira das árvores, como uma câmera analógica, criando o seu próprio mundo, completamente fora da era digital. Porém, o  seu passado ressurgirá através de encontros inesperados com certas personagens —  talvez mais um a referência a ‘After Dark-Os Passageiros da Noite’, de Haruki Murakami. Hirayama é um anti-herói e um personagem sem passado tal como o Travis/Harry Dean Stanton de ‘Paris, Texas’ e de outras figuras que foram abandonadas ou que a sociedade os abandonou e que deambulam pelos filmes de Wenders. Com ‘Perfect Days’, Wenders regressa assim ao seu estilo contemplativo e explorando de uma forma muito emocionante, temas como a solidão, a fuga e a procura de sentido na vida moderna, sempre de uma forma muito próxima e familiar com o personagem principal. Além de ser uma comovente e poética reflexão sobre a família e a busca da beleza no quotidiano, independentemente dos valores materiais. 

VÊ TRAILER DE ‘LAST SUMMER’

Outro regresso muito aguardado era o da realizadora francesa Catherine Breillat, desta vez com ‘Last Summer’, também apresentado na Competição. A realizadora, não rodava um filme há dez anos, sendo o último ‘Abuse of Weakness’, com Isabelle Huppert, numa adaptação do seu romance autobiográfico, sobre um vigarista que a arruinou. Mulher de muitos azares na vida, agora hemiplégica após um AVC, a realizadora voltou à Croisette, onde não competia desde 2007, com ‘An Old Mistress’, interpretada por Asia Argento. ‘Last Summer’ é um remake de ‘A Rainha de Copas’ (Dronnigen, 2019), um filme da dinamarquesa de May el-Toukhy, protagonizado pela actriz e cantora Trine Dyrholm (‘Nico’) e conta a história de uma prestigiada advogada de casos de família, interpretada por Léa Drucker, que acaba por ter um caso amoroso com o enteado de 17 anos (Samuel Kirscher), filho do primeiro casamento do marido. ‘Last Summer’ é em primeiro lugar uma ode à rebeldia e à beleza da adolescência, onde sem moralismos, a realizadora mostra-nos como uma verdade pode torna-se mentira e como isso ter consequências devastadoras para os dois protagonistas.

Festival de cannes 2023
‘Last Summer’/© Catherine Breillat

A pulsão sexual, transforma-se em amor ou o desejo recíproco entre poderes assimétricos sobrepõe-se a ambos. Começa como se fosse uma simples comédia de costumes, mas a tragédia aproxima-se, e o filme agarra-nos com seu caráter implacável e aberto a qualquer livre interpretação ou julgamento. As cenas de sexo, são menos cruas que as do costume dos filmes de Breillat, mas não menos constrangedoras: a câmera filma sobretudo e longamente o rosto da sua heroína de olhos fechados, procurando um mistério sem, encontrar desculpas para o que está a acontecer. Anne não tem desculpa, e sabe disso. Primeiro, quando é acusada, evidencia um fúria fria e assassina, já que nesse momento pode perder tudo: o seu bem-estar, o marido, as filhas, o prestígio profissional e uma acusação judicial de abuso de menor. Porém depois evidencia, uma crescente intranquilidade e não resiste à tentação. ‘Last Summer’ é um filme simpático que alimenta algumas das nossas fantasias, mas para todos os efeito o original dinamarquês é muito melhor. Vale a pena revê-lo!

JVM




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