Maratona Boca do Inferno, a Crítica | 6 horas de puro entretenimento no IndieLisboa
No último fim de semana do IndieLisboa 2025, na maratona de 9 para 10 de maio, o Cinema Ideal voltou a acolher, uma vez mais, a Maratona da Boca do Inferno. Ao todo, foram seis horas de cinema sem limites.
A Maratona Boca do Inferno, uma das rubricas mais acarinhadas do IndieLisboa, regressou em 2025, no dia 9 de maio e no Cinema Ideal com uma sessão com a duração estonteante de 346 minutos. Ao todo, foram seis horas de cinema (quase) sem parar, num total de 11 obras, três delas longas-metragens – duas inseridas na secção titular, “Boca do Inferno” e uma delas na rubrica de programação “Director’s Cut”.
Esta noite em branco, ao longo de seis horas, é pensada para puros amantes de cinema. Entre os filmes programados temos obras que pendem mais para o erótico, outras para o terror, mas todas respeitam as características basilares da secção Boca do Inferno – obras arrojadas, terroríficas, fora da caixa, capazes de provocar emoções fortes e de deixar o sono bem longe. Nem um único filme com ritmo lento passou por aqui, tal é garantido.
Maratona Boca do Inferno: 11 filmes numa noite atípica
Foram 8 curtas-metragens e 3 longas, com direito a dois intervalos. O ambiente na sala era familiar e as regras ligeiramente aldrabadas – não faltava quem tivesse trazido comida de fora, entre fast food ou gomas e outros snacks para alimentar a fome perante as largas horas (muito bem passadas) de cinema.
Há que dizer, sobre a Maratona da Boca do Inferno, que esta sessão tão acarinhada pela organização é extraordinariamente bem organizada: os filmes são sempre energéticos, vibrantes e capazes de manter as emoções bem em altas, tal como requer uma sessão tão longa quanto esta.
O arranque fez-se com uma pequena curta de cinco minutos de duração, “In and Out of the Hornbeam Maze”, de Thomas Stark, um pequeno filme hipnótico e a introdução perfeita para uma programação que viria a revelar narrativas mais complexas e longas. Aqui, mergulhamos no espaço dos labirintos e das rimas infantis para uma breve narrativa visual capaz de provocar arrepios. Não se espera menos, ao fim de contas o filme baseia-se numa balada de terror escrita pela poetisa escocesa Helen Adam e o caráter etéreo reforça o desconforto de quem vê.
Um aplauso para a morte: a animação no IndieLisboa
De seguida, mais uma curta, desta vez uma animação deliciosamente cíclica, mórbida e visualmente apelativa – “A Round of Applause for Death”, de Stephen Irwin. Este pequeno filme faz-nos aplaudir a morte uma e outra, e outra, e ainda outra vez. As palavras de ordem são sempre as mesmas, mas o cenário vai operando uma interessante transformação, com uma animação valorosa que reforça a ironia em destaque no grande ecrã.
O absurdo instala-se com a curta de 8 minutos “Channelvue”, que foi apresentada em sala, no Cinema Ideal, pelo seu realizador Brandon Tauszik e também pelo respetivo argumentista, Joe Veix. Este filme opera uma viagem no tempo e leva-nos até aos anos 90 e a uma era de sucesso da televisão. Baseada numa história verídica, nesta curta Boca do Inferno acompanhamos o dia caótico de uma estação de televisão que vê a sua programação atacada por hackers.
Esta obra permite-nos refletir acerca de voyeurismo mediático e tem como seu maior trunfo uma estética retro e uma capacidade de não se levar demasiado a sério. E apesar de se apresentar como uma experiência sensorial interessante e uma crítica forte ao sistema mediático, sentimos alguma falta de desenvolvimento. Talvez pudéssemos ter sabido mais acerca deste ataque ao canal?
MadS ou como ainda há muito por onde desenvolver o filme de zombies
Realizado e escrito por David Moreau, “MadS” foi a primeira longa-metragem exibida na Maratona da Boca do Inferno no ano de 2025. Neste filme francês de elevada qualidade, tudo começa quando o jovem Romain se desloca a casa de um amigo para experimentar uma nova droga antes de uma noite de pura festa. O êxtase é a palavra de ordem e a música, alta e a bom som, quase consegue abafar o cenário caricato com que o protagonista se depara. Uma mulher está no meio da estrada, entra no seu carro, e depressa se inicia uma viagem vertiginosa aos infernos.
Quem é esta mulher, de que laboratório virá, que experiência científica bizarra a levou a ficar no terrível estado em que se encontra? Romain não se vê mais livre desta ameaça, num filme que vence por conseguir criar uma atmosfera absolutamente aterradora e capaz de tudo abarcar. O apocalipse zombie que aqui vemos faz-se sobretudo através de efeitos práticos e uma excelente maquilhagem.
Faz-se também (muito) através do trabalho de som. Sim, o trabalho de som de “MadS”, filme nomeado em Sitges, o festival de fantasia por excelência, é verdadeiramente delicioso. Deixa-nos em estado de alerta desde o primeiro segundo e é também importantíssimo na caracterização das personagens e na sua evolução rumo à pura destruição por meio de apocalipse zombie.
Além disso, “MadS” emprega também de forma muito inteligente um plano único subtil e, não fosse isso suficiente para tornar a sucessão de eventos mais envolvente, tem ainda a inteligência de oscilar entre protagonistas. Romain não é a única personagem que lidera a nossa narrativa, seguindo-se duas das suas amigas e amantes. Assim, percorremos a sua cidade, as suas casas, os seus locais de festa e todas as antigas estradas mundanas num clima de permanente tensão de cortar a respiração. Os zombies, esses são como criaturas alienígenas dançantes que emitem sons horrorizantes. Uma viagem maquiavélica de notória qualidade, que faz muito com muito pouco.
Primeiras paixões e derradeiros testamentos nas curtas da Boca do Inferno
De Espanha, entre o terror e a comédia, aliás um local que habitamos repetidamente e com sucesso na maratona da Boca do Inferno, surge-nos a curtas “Las Chicas”, de Laura Obradors. Aqui, uma primeira paixão é levada ao extremo, e uma protagonista comporta-se de forma pouco correta quando começa a perseguir o objeto do seu desejo. Ao invés de ser repreendida, a nossa jovem é incentivada pelas amigas, que acabam a assediar o jovem rapaz num balneário e a envolver-se num confronto inesperado. Serão bruxas? Serão apenas adolescentes? Há questões colocadas, mas muitas outras limitam-se a pender no ar. Gostaríamos de ter tido mais respostas, mas “Las Chicas” não estava disposto a dá-las.
E por falar em humor e sarcasmo, aqui temos muito mais em doses ilimitadas. Com “Finding Daddy”, de Emily Wilson, duas filhas miseráveis e com terrível aspecto, descobrem que o seu pai, com quem não mantêm uma relação, se encontra em dating apps a prometer pagar mundos e fundos a possíveis companheiras femininas. E se o seu pai está disposto a ser “sugar daddy”, e se tem dinheiro para isso, então porque não partilhar parte deste dinheiro com as suas filhas? A premissa desta curta é extremamente engraçada, mas a resolução é demasiado precipitada, tão rápida que não temos tempo de a digerir. Sim, trata-se de uma curta, mas ao fim de contas uma boa história justifica os seus eventos e nesta obra da maratona da Boca do Inferno simplesmente ficou a faltar essa agilidade para a narração de histórias.
El Tema Del Verano: mais amor zombie no IndieLisboa
Depois de um breve e bem-vindo intervalo, chegámos à segunda longa-metragem da extensa noite no Cinema Ideal com “El Tema Del Verano”, uma comédia de zombies algo fora da caixa que resulta de uma colaboração entre a Argentina, Chile e Uruguai. Este filme do autor Pablo Stoll mostra-nos como o género “filme de zombie” pode ser de tudo um pouco e verdadeiramente abrangente – quer em termos de estilo como narrativa.
Perante esta sessão Boca do Inferno, é difícil não avaliar “El Tema Del Verano” em comparação com “MadS”. Onde “MadS” era pesado, duro, escuro, atmosférico e terrorífico, este “El Tema Del Verano” é, como o n0me indica, leve, irónico, colorido, banhado essencialmente pela luz do sol à beira de uma infinity pool. Com uma equipa extensa de efeitos especiais e uma capacidade notável de os colocar em prática, este é um filme bem realizado, embora do ponto de vista do argumento demore bastante a desenvolver.
Sim, o final é divertido, glorioso até e provocador, conseguindo fazer casar uma narrativa em estilo flashback com um tempo presente dominante. Mas apesar do final entregue ser vencedor e animado, existem muitos tempos mortos em “El Tema Del Verano”. Esta é a história de Ana, Malú e Martina, três aldrabonas profissionais. A sua estratégia é clara e recorrente: encontram homens ricos, seduzem-nos, adormecem-nos e roubam-lhes o dinheiro. A vítima mais recente é um milionário com uma enorme mansão e uma fortuna em criptomoedas.
Todavia, tudo corre mal com o seu plano, as dosagens incluídas e, para piorar tudo, os mortos deixaram de morrer. Agora, continuam sem o dinheiro que tanto queriam e têm de lidar com o início do fim do mundo via apocalipse zombie. Isto tudo durante uma pandemia (à lá COVID-19) que acaba por disfarçar a epidemia de mortos-vivos que se desenrola.
Um dos trunfos do filme é a sua brincadeira constante com a noção de quanto vale o dinheiro e o que estamos dispostos a fazer por ele. A certa altura, uma das protagonistas até defende “o mundo acabou, o capitalismo não”. Aqui está ele, na Boca do Inferno e neste “El Tema Del Verano”, o limite máximo do capitalismo tardio. Quão superficiais se tornaram as relações humanas? Neste filme, o fim do mundo parece mais fácil de imaginar que o fim genuíno do capitalismo e a organização de uma nova forma de vida em sociedade. Pela sua clara consciência política e social brincalhona, atribuímos pontos extra a “El Tema Del Verano”, uma entrada válida e pouco comum no género do cinema zombie.
Um segundo jesus, entregas de pizzas e mirabolásticas saídas de casa
A curta seguinte foi “Yazza”, da autoria de Francisco Lacerda, uma obra vinda de Portugal, insana e com estreia mundial aqui garantida. Ficamos com a sinopse: “Às vezes estás em casa com um amigo e dizes que se não saírem chegarão atrasados e a resposta é um frenesim louco, inesperado e total.” O que se segue não ousamos descrever, mas tem o grau de caos perfeito para esta maratona da Boca do Inferno.
E se algumas curtas desta maratona nos pareceram subdesenvolvidas, esse não é de certo o caso de “Jesus 2”, uma animação de Jesse Moynihan vinda dos Estados Unidos. Aqui, existe um grau impressionante de desenvolvimento de personagens, narrativa e acima de tudo de identidade gráfica para uns meros 8 minutos de ação. A premissa? Tão louca quanto podíamos esperar e a acompanhar a identidade visual. Jesus está de regresso, é um viajante intergalático, não permite que ninguém morra, e eis que todos o odeiam e dois irmãos planeiam tentar destruí-lo. Sim, é mesmo esse o enredo e é tão delicioso (e tresloucado) quanto parece.
“Make Me A Pizza”, obra vinda dos EUA pela mão de Talia Shea Levin, é uma subversão deliciosa de um cliché clássico da pornografia. Com uma estética retro, à lá anos 70/80, uma mulher recebe uma pizza de um estafeta e diz não ter dinheiro para a pagar. A solução será pagar com o corpo, com uma sessão apaixonada de amor. Todavia, o filme opta por um hilariante prisma marxista absurdo, com uma sucessão de imagens de proletariado a trabalhar em fábricas inesperadamente incluídas, e começa uma discussão em torno do valor monetário daquela pizza e do trabalho envolvido por todos aqueles que fizeram com que o alimento ali chegasse. O que se segue é uma proposta desvairada e inesquecível: “Porque é que não nos tornamos então pizza?”, sugere a mulher que não tem dinheiro para pagar. Segue-se uma hilariante sessão de amor repleta dos ingredientes essenciais de uma gigante pizza familiar. A narrativa é perfeitamente surreal e supera todas as expectativas ao abraçar este valor do cómico e absurdo.
Adeus à maratona com Café Flesh, ‘Porno’ dos anos 80
Para os últimos resistentes, pelas 4 e tal da matina, começou a última longa-metragem da maratona da Boca do Inferno. Trata-se de uma versão restaurada de “Café Flesh” (1982), um divertidíssimo filme porno que acaba por dever mais à comédia do que propriamente ao erotismo. Com uma sensibilidade Camp exuberante e inegável, esta longa porno valoriza o teatral, o exagerado e as sensibilidades mais dramáticas. A sua premissa não engana.
Aqui, entramos no mundo do mais puro e extremo voyeurismo. Estamos num universo pós-apocalíptico, onde a maioria das pessoas se tornaram “sexo negativas”. Incapazes de sentir prazer, incapazes de fazer sexo, estas pessoas não têm outra hipótese senão ver em palco os “sex positives”. Em estabelecimentos como o Café Flesh, aqueles (poucos) que são capazes de ter relações sexuais são inclusive policiados nesse sentido, obrigados a entreter a esmagadora maioria num espectáculo sexual que se assemelha mais ao teatro musical.
Tudo é exuberante em “Café Flesh”, a maravilhosa banda sonora contagiante que nos dá vontade de dançar nas cadeiras de cinema, os guarda-roupas, bem como a imponente cenografia. O filme de Stephen Sayadian é totalmente subversivo no que diz respeito ao que esperamos no cinema para adultos, colocando uma ênfase superior na narrativa – um casal que é testado pelo desejo latente de um dos seus membros – e também em toda a construção visual da longa.
Este filme de culto para adultos teve a sua estreia nacional no IndieLisboa, e já estava mais do que na hora. Não podemos chamar-lhe verdadeiramente pornografia, pois vai contra os seus lugares comuns e encontra na teatralidade a sua casa. As convenções do cinema erótico são abaladas, e a direção de arte à lá anos 70, com a tal estética camp que mencionámos, salta à vista. Pode não ser um filme para todos (houve quem deixasse a sala perante as suas imagens), mas sem dúvida é uma pérola inegável para fãs de cinema experimental e transgressor dos seus respetivos géneros.
Já alguma vez foste à Maratona da Boca do Inferno no IndieLisboa? São seis horas de cinema insano, variado, e sempre em altas a não perder!