"Holy Emy" | © StudioBauhaus

IndieLisboa ’22 | Holy Emy, em análise

“Holy Emy” é um filme de terror grego com um toque filipino. Realizada por Araceli Lemos, a fita integra a programação Boca do Inferno do 19º IndieLisboa depois de já ter passado pelo Festival de Locarno no ano passado.

“Eu existo” é a afirmação, o lema, o grito que reverbera pela primeira longa-metragem de Araceli Lemos. Tal como ela, as suas personagens vivem na Grécia, mas sentem a ligação forte para com a terra natal – as Filipinas. Vivem num limbo, errantes e sem pátria, na busca do seu lugar no mundo. Assim sendo, “Holy Emy” poder-se-ia descrever como uma narrativa do imigrante, algo comum no contexto do realismo Europeu. Contudo, a obra não se restringe aos limites do real e seu grito de existência ressoa com tonalidades mágicas, miraculosas, quiçá demoníacas.

Emy e Teresa são as nossas protagonistas, duas metades de uma dicotomia que intersecta assimilação cultural com questões de espiritualidade. Ambas vivem na Europa separadas da mãe, numa localidade costeira cuja única ligação com as Filipinas se faz através de videochamadas ocasionais. Contudo, não obstante a semelhança das suas condições, cada jovem segue por vias opostas no que se refere à fé, ao entendimento do mundo. Teresa, que está grávida de um companheiro grego, dedica-se à congregação católica onde se concentram os imigrantes Filipinos locais.

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© StudioBauhaus

Em certa medida, ela mantém-se fiel ao espírito comunitário, mas essa escolha separa-a da mãe e irmã. Acontece que Emy não pode seguir cegamente os ensinos cristãos ou os costumes que vingam nas Filipinas e sua nova casa. Tal como a progenitora, ela tem poderes estranhos, materializados num corpo cuja mera presença física emana forças sobrenaturais. Não é Deus nem é Diabo quem a chamam, mas sim o sentido de propósito e responsabilidade que acarretam tais talentos. Seu toque contém o sopro da vida, capaz de reverter a morte, mesmo que momentaneamente.

A aceitação de tais fenómenos despoleta o cisma entre as irmãs. Temerosa pelo seu filho e crente na ordem cristã do universo, Teresa rejeita as facetas tenebrosas de Emy e resguarda-se nas superstições partilhadas com os restantes imigrantes Filipinos. A jovem mágica, por seu lado, procura refúgio em curandeiros ostracizados pela restante sociedade. Pelo caminho, ela encontra a patronagem daqueles Gregos que, noutro contexto, a olhariam com esgar xenofóbico. Está ela encontrar liberdade para ser quem é, ou a cair num poço de exploração e servitude?

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Uma mecenas envelhecida parece bruxa saída diretamente do universo cinematográfico de Dario Argento, enquanto as práticas de magia corpórea se prendem a uma visceralidade à la Cronenberg. Algo é certo, o terror de “Holy Emy” devém tanto do espírito como da carne, da fé e da dúvida. Contudo, neste plano de dualidades, a terra de onde floresce o pesadelo também pode ser condutor de irmandade. As primeiras imagens do filme mostram isso mesmo, observando o corpo nu enquanto objeto místico, mas também como elo de união entre as mulheres.

Tais dinâmicas também se manifestam nas estratégias audiovisuais de Lemos. Como já apontámos, “Holy Emy” existe numa continuidade de cinema socio-realista Europeu, preferindo a luz natural e localizações reais, um apelo à materialidade do quotidiano e uma refração de questões políticas em histórias de sofrimento individual. Contudo, a disrupção do sobrenatural é essencial para a narrativa. Quando essa vertente aparece enquadrada no realismo, é como se o transtorno fosse sublinhado. Estas visões de normalidade ancoram a magia e exacerbam o horror.

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© StudioBauhaus

Também exacerbam a peculiar beleza de Emy e seus poderes. Não vamos revelar um final de cortar a respiração, mas apontamos para cenas semelhantes em “Holy Emy”. Note-se o primeiro vislumbre do irreal, quando a jovem titular passeia pelo mercado onde trabalha. Um toque faz renascer a cabeça decepada de um peixe, enquanto lágrimas de sangue pintam a cara da mulher. A sonoplastia sugere o sussurro de outras dimensões, mas a imagem jamais quebra a serenidade observacional do restante filme. De facto, só o rito católico parece estimular maior estilização.

Noutra ocasião, um jantar de família descende no caos quando Emy cai na tentação, usando seu corpo como ferramenta para punir ao invés de curar. Tudo ocorre através de dores invisíveis, a única pista visual são espinhas de peixe, ora descartadas ou engolidas à força. Face a tal violência, o cinema de Araceli Lemos também mostra afinidades com a Weird Wave dos Gregos, apimentada pela sobreposição de tradição Filipina. O resultado final é algo único nas suas especificidades, um filme chocante que, tal como sua protagonista grita “Eu existo” em jeito de reclamação, de conquista do seu lugar no mundo e no cinema.

Holy Emy, em análise

Movie title: Holy Emy

Date published: 30 de April de 2022

Director(s): Araceli Lemos

Actor(s): Abigael Loma, Hasmine Killip, Eirini Inglesi, Angeli Bayani, Ku Aquino, Mihalis Siriopoulos, Julio Katsis, Elsa Lekakou

Genre: Drama, Terror, 2021, 111 min

  • Cláudio Alves - 78
78

CONCLUSÃO:

Entre o choque e a meditação, “Holy Emy” explora a incerteza da perspetiva imigrante através do terror do corpo, o conflito de fé, o desentendimento de irmãs. Este exercício em terror greco-filipino é um sonho violento, tanto ao nível físico como emocional. Mal podemos esperar para ver os filmes futuros da realizadora Araceli Lemos.

O MELHOR: As cenas de cura miraculosa, especialmente o final. Fez-nos recordar o “Ordet” de Dreyer, tanto pela sua severidade como pela euforia que desperta.

O PIOR: Abigael Loma é uma boa atriz, apesar de este ser o seu primeiro papel. Contudo, a inexpressão com que aborda Emy tem os seus limites. É clarividente que Lemos pretende erguer algumas barreiras entre o espetador e sua misteriosa heroína, mas o resultado final cai em demasia no foro alienante.

CA

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