A Prisioneira de Bordéus, a Crítica | Hafsia Herzi e Isabelle Huppert em dueto dramático
Também conhecido como “La Prisonnière de Bordeaux” e “Visiting Hours,” o novo filme de Patricia Mazuy reúne Hafsia Herzi e Isabelle Huppert para uma história de amizades improváveis. “A Prisioneira de Bordéus” teve estreia em Cannes e agora chega aos cinemas portugueses.
Não se deixem enganar pelo título. “A Prisioneira de Bordéus” não é nenhum drama prisional sobre uma mulher atrás das grades, forçada a passar o resto da vida encarcerada em Bordéus. Ou, pelo menos, não o é no sentido literal. No novo drama que Patricia Mazuy levou a Cannes e ao LEFFEST, as mulheres encontram-se agrilhoadas à cidade pela sua condição enquanto esposas, esperando a libertação dos maridos condenados. São elas que, todos os meses, viajam até à prisão para os visitar, congregando com outras almas perdidas na mesma condição, uma irmandade que transcende a classe e as une. Mas só até um certo ponto.
A história é simples, centrando-se na amizade forjada entre Alma e Mina, duas esposas de prisioneiros cujas realidades não podiam ser mais diferentes. Uma antiga bailarina, Alma vive a existência de uma burguesa abastada, habitando um casarão cheio de arte em que o marido cirurgião investiu como um homem da bolsa virado para o mercado da pintura. Esse senhor está preso pelo homicídio de mãe e filha, quando, certa noite, conduzia embriagado e as atropelou, fugindo sem remorso. Por estranho que pareça, a sentença é bem mais leve que a do marido de Mina, um criminoso comum, apanhado em flagrante delito quando assaltava uma ourivesaria.
Mazuy concebe cuidados estudos de personagem.
Como será evidente, há razões bem óbvias para a diferença nas sentenças e as próprias personagens não têm papas na língua, verbalizando a injustiça do sistema. Porque Mina nem o marido são brancos, e sua classe está muito abaixo dessa alta burguesia de Alma. Sem dinheiro para advogados caros ou cunhas com que atenuar as conclusões da juíza, o ladrão é mais punido que o assassino. Isto deixa a mulher sozinha, com dois filhos para criar e os antigos cúmplices do marido a fazerem pressão. Para piorar a situação, ao invés de ser posto numa prisão perto de casa, o condenado está a muitos quilómetros de Mina.
Sempre que o quer visitar, ela tem que deixar os miúdos aos cuidados de outrem e viajar até outra ponta do país. O que não é fácil para alguém com trabalho precário e inúmeras contas para pagar. É numa dessas ocasiões que ela cruza caminhos com Alma. Acontece quando um erro burocrático leva Mina ao desespero, informada que veio à prisão no dia errado, ela tenta tudo para remediar a situação. Até finge um desmaio e, no meio do furor, chama a atenção da ex-bailarina. Também lhe desperta a curiosidade e, à saída, Alma decide dar-lhe boleia, convida-a almoçar em casa e até lhe oferece um quarto para passar a noite. É o começo de uma amizade improvável.
Dito isso, Mazuy não está aqui a tentar seduzir o mesmo público que fez dos “Amigos Improváveis” com François Cluzet e Omar Sy num fenómeno das bilheteiras. “A Prisioneira de Bordéus” não quer reconfortar com platitudes vácuas ou fazer um elogio ao poder da amizade para derrubar as barreiras étnicas e classes. Por muito caridosa que Alma possa ser, há sempre uma inquietante condicionalidade no seu comportamento, a noção de que, a qualquer momento, ela pode tirar tudo a Mina. Especialmente quando abre a sua casa para ela e os meninos, lhe arranja trabalho e se torna na sua principal confidente.
Além do mais, nem Mazuy nem Isabelle Huppert nos deixam crer numa qualquer bondade santa, sempre sombreando a luz de Alma com sugestões de egoísmo. O desequilíbrio de poder entre as duas mulheres serve de antídoto à solidão da burguesa e sua personalidade mercúrica tanto encanta como preocupa. Isso nunca é mais aparente quando, uma noite, ela convida outros amigos para jantar e estes olham a família de Mina como um adorno Orientalista, quase troçam da mãe e seus meninos. Apesar disso, estas tensões também não definem a personagem, ou a pintam como vilã. “Prisoneira de Bordéus” não é nenhum filme de Buñuel, Chabrol ou Bong.
Duas grandes atrizes em estado de graça.
Nada disto resultaria sem a presença escorregadia de Huppert, sua habilidade para fazer com que as contradições do texto façam sentido e de nos fascinar, como que magnetizando a atenção do espectador. Tanta é a maravilha desta diva que a parte mais surpreendente de toda a produção será como Hafsia Herzi consegue, apesar de tudo, dominar a narrativa. A sua Mina corre o risco de ser uma caricatura saída do mais lúgubre realismo social Europeu, mas a atriz de origens marroquinas está sempre disposta a surpreender. Ora pelo modo como se entrega aos absurdos de Mina naquela primeira cena, ora nas reticências que deixa suspensas na relação com o marido.
Mazuy e companhia concebem um idílio ilusório na cumplicidade das duas mulheres, mas jamais apagam a noção que estas felicidades são efémeras. Quando tudo dá para o torto, não é um choque nem será uma lição moralista. Vertentes didáticas não marcam presença e ficamos com um estudo de personagem duplo cujas principais qualidades são as duas grandes performances no centro de tudo. Mesmo quando o texto se enfia em becos sem saída, incapaz de resolver as tensões que invocou. Mesmo quando a fotografia Simon Beaufils insiste na beleza à revelia dos ditames dramáticos da obra. Mesmo quando os gestos elípticos e cronologias retorcidas da primeira cena se revelam. Mesmo aí, não há nada que ofusque quão brilhantes Herzi e Huppert são, duas estrelas do cinema francês em estado de graça. “A Prisioneira de Bordéus” vale por elas e só um dos seus diálogos – cómicos, trágicos, francos ou cheios de mentiras – já justifica a ida ao cinema.
A Prisioneira de Bordéus
Conclusão
- “A Prisioneira de Bordéus” é uma montra excelente para os dotes tragicómicos de Isabelle Huppert e os talentos de Hafsia Herzi, estrela em ascensão do cinema francês. Patricia Mazuy é uma extraordinária realizadora no que toca à direção de atores, mas suas observações sociais também têm mérito. Sem cair no cliché que a sua premissa pode sugerir, o filme está repleto de observações sagazes cujo valor não se perde com a estrutura meio incerta ou uma conclusão que é tão ingrata para o espectador quanto inevitável paras as personagens.
- O MELHOR: Herzi e Huppert, dupla insuperável.
- O PIOR: A sequência introdutória in media res, ao que se segue a ação principal em forma de pseudo flashback é um descomunal passo em falso. Telegrafa em demasia o clímax da história e detrai dos conflitos internos que conseguimos reconhecer tanto em Alma como Mina.