"A Idade de Ouro" | © LEFFEST

LEFFEST ’20 | A Idade de Ouro, em análise

Entre o surrealismo e a heresia, “A Idade de Ouro” é um dos filmes mais provocantes de sempre, tendo vindo a causar escândalo e polémico desde que Luis Buñuel e Salvador Dali o estrearam em 1930. O filme está em destaque no LEFFEST deste ano.

Com uns parcos 16 minutos, “Um Cão Andaluz” chocou o mundo da arte, da cinefilia e dos bons costumes. Essa curta-metragem de Salvador Dali e Luis Buñuel foi como um tiro de canhão apontado diretamente às audiências, disparando loucura surrealista e um total desrespeito pela norma. Um ano depois, Marie-Laurie e Charles de Noailles encomendaram aos artistas um seguimento do projeto, desta vez sob a forma de uma longa-metragem. Assim nasceu “A Idade de Ouro”.

Trata-se da união jubilante de um radical político e um artista vanguardista, de um guerreiro do grande ecrã e um palhaço dos museus. Por outras palavras, é sublime, mas também gerou muito conflito entre seus criadores. Dali tinha pouca paciência para a retórica do colega e Buñuel estava cada vez mais frustrado com a apatia do outro homem. Por isso mesmo, depois do argumento estar pronto, Dali abandonou o projeto, o que se consta nas imagens que são menos maravilhosas que na antecessora curta-metragem. Segundo a lenda, Buñuel perseguiu o colega com um martelo, expulsando-o efetivamente da produção.

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Se, para Buñuel, “Um Cão Andaluz” era uma brincadeira cuidadosamente despida de vitupério político bem definido, “A Idade de Ouro” não devia esconder os seus alvos. A igreja católica, em particular, está na mira dos cineastas. O realizador jamais poupou essa instituição religiosa de críticas e sua fúria contra o apoio silencioso que o Vaticano fez ao regime de Franco era particularmente forte. “Viridiana” de 1961, praticamente aponta para o clero como cúmplices da ditadura e pinta a Última Ceia de Cristo como um banquete de vagabundos sujos.

Nesta fita de 1930, Buñuel ainda não tinha língua tão afiada ou jeito de cineasta tão apurado. Suas investidas contra a igreja são mais brincalhonas que cortantes, mas isso não impediu os religiosos de declararem guerra ao filme. De facto, diríamos que, apesar das suas ideias basilares, “A Idade do Ouro quase que parece feito com o intuito de circum-navegar definições tradicionais de bom ou mau, qualidade ou fracasso. Mais do que um trabalho artístico a pedir para ser apreciado, “A Idade de Ouro” é uma provocação em forma de cinema.

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Qual toureiro, Buñuel abana suas imagens como uma capa escarlate defronte dos nossos olhos, pedindo a nossa investida cornuda. Nesse sentido, a igreja assumiu bem o papel de boi. O filme está cheio de piadas flatulentas e hereges, fazendo da blasfémia um jogo. Inicialmente, até parece que não há grande nexo às imagens senão a vontade de chocar e fazer rir com absurdismo violento. Até a forma é disfuncional, misturando a linguagem do filme mudo com a gramática do sonoro. Caos propositado não deixa, por isso, de ser caos e “A Idade de Ouro” é um buraco negro de força caótica convergindo em volta da imaginação de Buñuel.

Só que, à medida que a irracionalidade se acumula, um discurso começa a ser articulado pelo dadaísmo surreal. A burguesia é exposta em tons de degredo e o clero é, literalmente, reduzido a esqueletos a apodrecer, obsoletos e feios, humanidade decomposta, mas adornada com joias e bordadura doirada. A certa altura, o conto de dois indigentes a tentarem ter sexo e a serem sempre interrompidos colide com uma historieta do Marquês de Sade. E quem havia de entrar nessa fantasia sádica do que Jesus Cristo?

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Fora destas vontades de gerar polémica, “A Idade de Ouro” esconde um sincero apelo à rendição humana à líbido. Repressão está fora de moda no cosmos de Buñuel e o caminho para a felicidade passa pela liberdade de mente, de espírito e de corpo também. O filme confunde de propósito, é malcriado e grotesco, é divertido e é deliciosamente pueril. É loucura em celuloide e causou motins quando estreou, especialmente devido à sua cuspidela no olho dos fascistas. Tantos anos depois, o filme ainda não perdeu a potência nem a estranheza. Bravo Señor Buñuel!

A Idade de Ouro, em análise
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Movie title: L'âge d'or

Date published: 18 de November de 2020

Director(s): Luis Buñuel

Actor(s): Gaston Modot, Lya Lys, Caridad de Laberdesque, Max Ernst, Artigas, Lionel Salem, Germaine Noizet, Duchange, Bonaventura Ináñez

Genre: Comédia, Drama, 1930, 60 min

  • Cláudio Alves - 95
  • José Vieira Mendes - 80
88

CONCLUSÃO:

Abaixo o bom gosto e que lixem os fundamentalistas religiosos. Viva anarquia e viva o cinema desbocado. “A Idade de Ouro” é um grito entesado de provocação sem estribeiras. Passados 90 anos desde a sua estreia parisiense causadora de motins, o filme de Buñuel (e Dali) ainda consegue surpreender e deleitar os seus espetadores.

O MELHOR: Os esqueletos do papado, o beijo na teta marmórea, os escorpiões canibais e Jesus Cristo em terra do Marquês de Sade. “A Idade de Ouro” está cheio de imagens que não se esquecem facilmente.

O PIOR: O filme é curto demais e está cheio de ideias que pedem mais desenvolvimento. O caos faz parte da experiência, mas é difícil não desejar mais ordem de vez em quando.

CA

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