Hind Rajab a voz que rompe o silêncio de Veneza.©Biennale Cinema

A voz de Hind Rajab e de Gaza ecoam no Lido | Festival de Veneza 2025 (Dia 8)

Hoje no Festival de Veneza 2025, continuou o glamour, houve estrelas, houve Scorsese a brincar ao Dumbledore…mas nada, absolutamente nada, conseguiu abafar a voz de uma menina de 6 anos palestiniana morta em Gaza. “The Voice of Hind Rajab”, de Kaouther Ben Hania, foi o soco no estômago que calou o Lido e expôs o genocídio que o mundo insiste em fingir não ver.

O cinema, às vezes, ainda serve para o que devia: gritar quando todos se calam. E foi o que aconteceu no Festival de Veneza 2025: “The Voice of Hind Rajab” é o filme transformou a sessão de imprensa das 8h30 na Sala Darsena (vamos ver como vai ser logo no Palácio do Cinema?), num quase velório coletivo. Silêncio absoluto, nós na garganta, olhos húmidos e não era encenação, nem fingimento. Era realmente muita emoção.

Festival de Veneza 2025
Os quatro atores: Saja Kilani, Motaz Malhees, Clara Khoury, Amer Hlehel. ©Biennale Cinema

Kaouther Ben Hania, realizador tunisino que já tinha deixado marca com “O Homem que Vendeu a Sua Pele” e “As Quatro Filhas”, traz-nos aqui ao Festival de Veneza 2025, um dispositivo simples e devastador: um único espaço, uma gravação real da conversa telefónica, combinada com as notáveis interpretações dos quatro actores (Saja Kilani, Motaz Malhees, Clara Khoury, Amer Hlehel), uma dolorosa espera que se prolonga como uma tortura.

O resto, o horror, não se vê. Não precisa. Fica para o final, com imagens reais, após o bombardeamento, que na verdade nem eram necessárias, dão aliás até um pequeno tom sensacionalista ao filme. Hind tinha seis anos. Ficou presa num carro em Gaza, cercada por bombardeamentos, ao telefone com os voluntários do Crescente Vermelho. Pediu ajuda. Ninguém chegou. Foi morta, com seis familiares.

Dois paramédicos enviados para a salvar foram também assassinados. E nós, espectadores, ouvimos a sua voz. Não há efeitos especiais que nos protejam desse som. Façam alguma coisa por aquelas crianças!

O filme que ninguém queria ver, mas todos têm de ver

O cinema europeu tem sido acusado de se perder em auto-ficções e vaidades de festival. Pois aqui está o antídoto vindo da Tunísia. Um filme que não é só cinema: é denúncia, é testemunho, é prova. E é por isso que deve ganhar o Leão de Ouro, não por militância ou chantagem moral, mas porque o cinema, quando é verdadeiramente grande, é isto: impedir o esquecimento. Brad Pitt, Joaquin Phoenix, Alfonso Cuarón e Jonathan Glazer juntaram-se como produtores executivos.

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Não certamente para brilharem na passadeira vermelha, do Festival de Veneza 2025, mas para garantir que este filme existe. A sua urgência é maior do que qualquer prémio. E, no entanto, não deixa de ser irónico que seja o Festival de Veneza 2025, um evento tantas vezes acusado de estetizar a miséria, a dar palco ao grito mais cru do ano.

Duse: a diva contra o tempo

No mesmo dia, Pietro Marcello estreou no Festival de Veneza 2025, “Duse”, biografia poética da grande actriz Eleonora Duse (1858-1924), a mãe de todas as divas italianas. Valeria Bruni Tedeschi empresta-lhe corpo e fragilidade num filme sobre a velhice, o regresso ao palco e a resistência da arte contra a marcha implacável da História.

É bonito, é sentido, tem momentos de grande cinema, misturadas também com imagens documentais da ascensão do fascismo italiano. Mas depois de ouvir a voz de Hind Rajab, tudo o resto parece decorativo. A tragédia da “Duse” é a do artista perante o fascismo nascente. A tragédia de Hind é a de uma criança que pede ajuda e não a recebe. O peso não é comparável.

Festival de Venexa 2025.
Oscar Isaac interpreta do duplo papel do escritor e de Dante. ©Biennale Cinema

Schnabel, Dante e o desastre de luxo

E houve ainda a estreia no Festival de Veneza 2025 de “In the Hand of Dante”, de Julian Schnabel, fora de competição e de facto foi tempo perdido. Uma salada temporal e barroca, entre o século XXI e século XIV, com Oscar Isaac, Gal Gadot, John Malkovich, Jason Momoa, Gerard Butler, Franco Nero, Al Pacino e… Martin Scorsese, que surge como uma espécie de Dumbledore tardio que a certa altura diz: ‘Árabe é o novo judeu’, uma frase, no contexto da época das origens da obra “A Divina Comédia”, mas que certamente acaba por ter impacto, uma vez que Israel está a ser acusado de cometer genocídio contra palestinianos em Gaza.

É o típico exemplo de que nem sempre mais é mais. O filme tenta cruzar a máfia nova-iorquina com Dante Alighieri, a poesia com a violência, o sagrado com o kitsch. Resultado: um desastre megalómano, prova de que não basta ter estrelas, é preciso ter norte. Schnabel continua convencido de que é génio, mas aqui parece só perdido em labirintos de ouro falso.

Festival de Veneza 2025
Momentos de angustia e espera ao telefone. ©Biennale Cinema

Gaza, a ferida que o cinema não pode ignorar

O oitavo dia do Festival de Veneza 2025 ficará gravado na memória da Biennale Cinema não por uma diva ressuscitada, nem por uma excentricidade hollywoodiana, mas por uma menina de seis anos que não sobreviveu à guerra. O Lido aplaudiu de pé — logo à noite vão contar os minutos de aplausos — mas a verdade é que isto não chega.

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Um festival não trava um genocídio. Um provável Leão de Ouro não ressuscitará Hind Rajab. Mas se o cinema ainda serve para alguma coisa, é para nos impedir de se virar a cara. Para nos obrigar a ouvir, mesmo quando a voz é a de uma criança a morrer sozinha num carro. E isso, meus caros, nenhum júri tem o direito de ignorar.

JVM


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