75º Festival de Cannes | O Cartaz Oficial e a Seleção Portuguesa
Já temos cartaz do 75º Festival de Cannes, com uma escadaria para uma revelação celestial e para 17 a 28 de maio. O ‘Fogo-fátuo’ de João Pedro Rodrigues estará na Quinzena dos Realizadores e ‘Ice Merchants’, uma animação do jovem João Gonzalez na Semana da Crítica.
Os degraus que levam à revelação, ao céu azul, numa celebração poética do infinito e da liberdade de criação é a imagem que marca o cartaz do 75º Festival de Cannes. Trata-se de uma simbólica subida aos céus, que procura esquecer o passado e avançar em direção a um futuro, numa verdadeira promessa de renovação. Tal como o inesquecível personagem Truman Burbank, encarnado por Jim Carrey, — a imagem é retirada do filme ‘The Truman Show: A Vida em Directo’ (1998), — que roça o horizonte com a ponta dos seus dedos, também o Festival (de Cinema) de Cannes, com esta sua imagem 2022, parece procurar fechar um ciclo do mundo, para apreendê-lo novamente: estamos perante uma crise climática, desastres humanitários, conflitos armados e existem muitas razões para estarmos preocupados com o futuro, mas é preciso dar a volta. Porém, como em outras alturas de crise, em 1939 e 1946, o Festival de Cannes continua assim a reafirmar a sua convicção de que a arte e o cinema são lugares de reflexão e contribuem para a reinvenção do mundo. Sem esquecer o seu compromisso fundador, descrito no Artigo 1 do seu regulamento: ‘O Festival Internacional de Cinema visa, num espírito de amizade e cooperação universal, revelar e destacar obras de qualidade para servir a evolução da arte cinematográfica’, são notas divulgadas no comunicado de imprensa, que acompanhou o anúncio deste cartaz com uma cena do invulgar filme com Jim Carey — acho que funciona também como uma espécie de oportuna homenagem ao instável e talentoso actor — e depois concebido pelo gabinete de design © Hartland Villa. ‘The Truman Show: A Vida em Directo’, realizado por Peter Weir (1998) (co-escrito com Andrew Niccol) é uma evocação moderna do mito da caverna de Platão e esta cena decisiva no filme como que convida o espectador, a tocar a fronteira entre a realidade e sua representação, ao mesmo tempo que questiona os poderes da ficção, entre manipulação e catarse. Se Truman, com esta subida, escapa às mentiras, o Festival de Cannes e a sua famosa passadeira vermelha, são uma caminho para entrar num cinema e descobrir a verdade da arte e dos artistas. Na semana passada o Festival anunciou a sua Selecção Oficial 2022, para já com 18 filmes na Competição principal: David Cronenberg, Irmãos Dardenne, Jerzy Skolimowski, Kelly Reichardt e James Gray , entre outros, são os ‘cabeças de cartaz’, entre os candidatos à Palma de Ouro 2022, que incluem esperemos também algumas boas revelações (e renovações), como parece prever o cartaz. Assim, apresentado o cartaz oficial, parece que vão ser anunciados em breve novos filmes na Selecção Oficial 2022, como aliás também a composição total do júri: o ‘putativo presidente’ Asghar Fahardi, parece que foi ‘chutado para canto’, depois do recém-noticiado escândalo de plágio, em que está envolvido.
OS PORTUGUESES: O FOGO E O GELO
Ao céu da Selecção Oficial, junta-se o fogo e a água (ou melhor o gelo), dos dois filmes portugueses selecionados para as duas mais importantes secções paralelas: João Pedro Rodrigues (‘O Ornitólogo’) estará na na Quinzena dos Realizadores com ‘Fogo-fátuo’ e ‘Ice Merchants’, a curta metragem de animação do jovem realizador João Gonzalez, terá a sua estreia mundial na Semana da Crítica. João Pedro Rodrigues leva à Quinzena — onde o ano passado esteve ‘Os Diários de Otsoga’, de Maureen Fazendeiro e Miguel Gomes — uma espécie de musical, político e erótico e segundo os programadores-selecionadores da Quinzena dos Realizadores, um ‘filme inesperado’, passado num quartel de bombeiros, que tem como pano de fundo os catastróficos incêndios na paisagem portuguesa (num futuro próximo) e que combina o fogo e o desejo entre dois jovens (Alfredo e Afonso) de origens e cor de pele diferentes. Este novo filme de João Pedro Rodrigues é uma co-produção luso-francesa, entre a Terratreme Filmes, House on Fire e a Filmes Fantasma. Depois de ter trabalhado nos premiados ‘Nestor’ e ‘The Voyager’, ‘Ice Merchants’ é o terceiro filme de João Gonzalez e o primeiro como realizador pleno. O filme conta a história de ‘um homem e o seu filho saltam de pára-quedas todos os dias, da sua casa fria e vertiginosa presa no alto de um precipício, para se deslocarem à aldeia que se situa na planície abaixo, onde vendem o gelo que produzem durante a noite’. Para além de realizador, diretor de arte e animador (tendo contado com a colaboração da animadora polaca Ala Nunu neste filme), João Gonzalez foi também instrumentista e compositor da banda sonora, que contou com a participação de Nuno Lobo na orquestração e de um grupo de músicos da ESMAE. A sonoplastia é de Ed Trousseau, com gravação e mistura de Ricardo Real e Joana Rodrigues. Uma equipa portuguesa, polaca, francesa e inglesa trabalhou na coloração da animação do filme, que é distribuído pela Agência da Curta Metragem, de Vila do Conde.
O PROGRAMA DA QUINZENA
A programação da Quinzena dos Realizadores — a última comissariada por Paolo Moretti— anunciada hoje, reflecte igualmente os tempos conturbados que vivemos: decorre há dois meses uma guerra na Europa, estamos plena semana da segunda volta das eleições presidenciais francesas, correndo o risco de uma ascensão da direita e a eleição de Marine Le Pen. Relativamente à Ucrânia, esta edição será dedicada ‘a todos e todas que deixaram de fazer os seus filmes para defenderem o seu país’, quanto às eleições naturalmente segundo as sondagens os resultados são imprevisíveis e reflectir-se-ão certamente no ambiente e no futuro do 75º Festival de Cannes, em geral. Porém, a Quinzena vai abrir como é habitual um dia depois, a 18 de Maio, e da melhor maneira com o filme italo-francês ‘L’Envol’, dirigido curiosamente pelo italiano Pietro Marcello (o realizador de ‘Martin Eden’), com Juliette Jouan, Noémie Lvovsky, Louis Garrel e Raphael Thiery. É inspirado em ‘Les Voiles Écarlates’ um conto onírico, romântico e mágico do escritor russo Alexander Grin (1880-1932). Passa-se no Norte de França no período a seguir à I Guerra Mundial e conta a história de uma jovem peregrina que acredita ser a porta-voz das profecias de uma bruxa. Para além do filme de Pietro Marcello e do português João Pedro Rodrigues, a Quinzena dos Realizadores, inclui outras obras que abrem grandes expectativas: a começar com ‘Les Annés Super 8’, da escritora Annie Ernaux e do seu filho David Ernaux, um filme feito a partir de home movies familiares. Curiosamente Annie Ernaux é a autora do livro ‘L’Évenement’, que foi adaptado ao cinema por Audrey Diwan, e foi o Leão de Ouro de Veneza 2021; ou então uma sessão especial com o filme ‘Men’, do escritor-realizador britânico Alex Garland.
Mas há também uma série de obras importantes, que vai ser muito dificil de conciliar com as sessões da Competição Oficial, como ‘Les Cinq Diables’, de Léa Mysius, com a fogosa Adèle Exarchopoulos; ‘1976’, um thriller metafísico da chilena Manuella Martelli, ’Un Beau Matin’, da francesa Mia Hansen-Love (‘A Ilha de Bergman), ‘El Água’, uma primeira obra da espanhola Elena López Riera, que foi muito destacada pelos programadores. E ainda, ’The Dam’, de Ali Cherri, ‘Ahkal’, de Youssef Chebbi, ‘De Human Corporis Fabrica’, de Véréna Paravel & Lucien Castaing-Taylor, ‘La Dérive des Continents (Au Sud)’, de Lionel Baier, ‘Enys Men’, de Mark Jenkin, ‘Falcon Lake’, de Charlotte Le Bon, ‘Funny Pages’, de Owen Kline, ‘God’s Creatures’, de Anna Rose Holmer e Saela Davis, ‘Harkis’, de Philippe Faucon, ‘The Mountain’, de Thomas Salvador, ‘Pamfir’, de Dmytro Sukholytkyy-Sobchuk, ‘Paris Memories’, de Alice Winocour, ‘Under the Fig Trees’, de Erige Sehiri, ‘Un Varón’, de Fabian Hernández, ‘Le Parfum Vert’, de Nicolas Parisier. Numa altura de transição na direcção-artística da Quinzena dos Realizadores é provável tal como no Festival de Cannes, depois de anunciada a nova presidente, haja algumas alterações na filosofia desta secção, que supostamente foi criada para os cineastas-rebeldes-com causa e como oposição à Competição Oficial. Veremos?
JVM