Foi só um acidente – Análise
Depois da estreia de “O Agente Secreto” (2025, Kleber Mendonça Filho) esta quinta-feira, na próxima semana chega às nossas salas de cinema mais um filme muito aguardado para quem gosta de acompanhar as obras vencedoras dos grandes festivais de cinema. Assim, vai estrear em Portugal na próxima quinta-feira 13 de novembro, o vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2025, “Foi só um acidente” (2025, Jafar Panahi).
“Foi só um acidente” é um filme filosófico sobre a justiça ou não da vingança. Devemos castigar o responsável pelo nosso sofrimento? É essa a grande questão que o filme levanta através de um micro-acontecimento que se vai intensificando.
Qual a narrativa de Foi só um acidente?

O contexto
“Foi só um acidente” trata-se do regresso de Jafar Panahi em pleno atrás das câmaras. Desde 2011 com “Isto não é um filme” até “Ursos não há” em 2022, o realizador esteve proibido de filmar no Irão. Contudo, ao inserir-se a si próprio como personagem nos seus filmes, continuou a lançar novas obras num híbrido entre o documentário e a ficção.
Jafar Panahi refere mesmo em entrevista num comunicado de imprensa: “Depois da minha primeira detenção em 2010, onde fui impedido de viajar e de fazer filmes, o meu foco alterou-se para as minhas próprias circunstâncias. Antes disso, a minha câmara estava virada para fora, mas, desde então, virou-se para dentro, para aquilo que eu estava a experienciar (…) Mas agora que essas restrições foram levantadas, senti necessidade de olhar para fora novamente – só que de forma diferente, desta vez, moldado por tudo aquilo que passei, incluindo uma segunda sentença de prisão entre julho de 2022 e fevereiro de 2023.”
Assim, nesta nova longa-metragem, o realizador regressa à ficção – ainda que a narrativa contenha alguns elementos ligados à realidade, refletindo-se a experiência do realizador na prisão – para nos trazer um filme onde se reflete sobre a moralidade que temos em fazer mal a alguém que também nos fez mal.
Apesar de Jafar Panahi estar livre, o filme foi também feito de forma ilegal para o regime do Irão, uma vez que o realizador não enviou o argumento para a censura. “(…) não fazia sentido submeter o argumento para este filme às autoridades para aprovação – então, não tenho alternativa senão continuar a trabalhar fora do sistema.”
A história de Foi só um acidente
O filme começa com o acidente literal que o título refere mas o enredo prossegue com um acontecimento que não é um acidente. Ou seja, Vahid (interpretado por Vahid Mobasseri) rapta o seu agressor Eghbal (Ebrahim Azizi) com o objetivo de o matar. Contudo, tem dúvidas da sua identidade… Assim, vai ter de pedir ajuda a outras pessoas para ter a certeza de que raptou a pessoa certa.
De um pequeno incidente a uma provocação
O filme “Foi só um acidente” começa de forma subtil, como forma de introduzir o espectador num micro-clima familiar. O título indica que haverá um acidente. Como tal, o espectador vai acompanhando os minutos iniciais com algum suspense, à espera que tal aconteça. O primeiro indício é uma lomba por onde o carro da família de Eghbal passa. Depois, há o acidente concreto, onde o pai de família atropela, por acidente, um cão. Ele opta por abandonar o cão e, pouco depois, o carro fica sem funcionar.
Estas três micro-cenas montam um estilo cinematográfico de detalhe que, depois, se rompe quando Eghbal é raptado por Vahid. Ou seja, o início do filme, com um olhar íntimo e lento trazem ecos de Abbas Kiarostami. O pai, Eghbal, que quer apenas meter o seu carro a funcionar, tal como Ghassem queria ver um jogo de futebol em “O Passageiro” (1974) ou como Ahmed que só queria devolver o caderno ao seu amigo em “Onde Fica a Casa do Meu Amigo?” (1987).
Há o realismo trazido por Jafar Panahi nesta sequência inicial. Depois disso, o realismo mantém-se, é certo, mas passamos a estar perante uma situação de crime e de ética, num ritmo bastante mais acelerado, além de passarmos a ter um enredo que vem acompanhado de alguma loucura. Loucura essa que também é percetível pelas memórias de prisão e violência que as personagens viveram. Há uma mudança completa de registo e enredo.
Será Eghbal realmente Eghbal?

Vahid reencontra-se com Eghbal (identificado, inicialmente, com outro nome) quando ele procura arranjar o seu carro. Segue-o até sua casa e até à oficina. Tenta atropelá-lo por duas vezes mas não consegue. Contudo, à segunda tentativa, abalroa-o com a porta do seu carro e com uma pá na cabeça.
Vahid esteve preso e foi torturado por Eghbal. Só consegue identificá-lo por ser coxo. Tenta enterrá-lo vivo mas começa a duvidar da identidade dele. Acima de tudo, e pela forma como o raptou, Vahid é justo e não consegue pagar na mesma moeda ao seu agressor. Ainda assim, com medo de cometer um erro, conhece outras pessoas que também foram presas e torturadas como ele. Problema: nenhuma delas realmente viu Eghbal porque todos estavam vendados. O que fazer agora, depois deste crime?
O enredo de “Foi só um acidente” continua com avanços e recuos dando-lhe alguns ares de “O Terceiro Tiro” (1955, Alfred Hitchcock). Ninguém sabe o que fazer com aquele corpo. O filme toma, portanto, um grau filosófico profundo: devo ou não devo matar o meu agressor?
Apesar de tudo isto, estas personagens têm humanidade e não são capazes de responder na mesma moeda. Contudo, levam a sua perseguição até ao limite. Até que descobrem que a esposa de Eghbal, grávida, desmaiou. Vahid é perentório: vai levá-la ao hospital.
Pensar nas consequências…

No fim, Vahid acaba apenas com Shiva (Mariam Afshari) a confrontar Eghbal. Nas últimas consequências, é aí que ele revela que é, de facto, Eghbal. Bastou isso para pôr termo ao crime, resultando numa epifania para todos. Esta cena é, talvez, a mais dolorosa, intensa, maior de duração e melhor conseguida de todo o filme. Realizada com um teatralidade tal que denuncia o ridículo da própria sobrevivência humana. Os tons vermelhos de castigo, sangue e possível morte intensificam toda a potência dramática da cena como nunca antes ao longo do filme.
O grupo de agredidos refere, a certa altura, a peça de Samuel Beckett “À Espera de Godot”. É clara a inspiração de Beckett no filme, independentemente da menção das personagens à peça. A árvore nua junto à cova que Vahid cavou denuncia-o. A questão é que, no filme, Godot não é invisível. Godot é Eghbal. No entanto, enquanto Eghbal não for Eghbal, ele é Godot porque toda a gente quer que ele seja Eghal. Porque refiro isto aqui: porque, na verdade, é esta cena entre as três personagens que, de facto, mostra o absurdo da situação e é ali que a árvore onde Eghbal fica atado se torna a árvore de Godot.
Os agredidos acabam todos por desistir de continuar o crime. No entanto, “Foi só um acidente” fecha com um coxear sonoro, sem nos mostrar quem é o dono desse som. Será o regresso de Eghal? Terá Vahid ficado num poço tão fundo que a sua consciência ficou pesada?
A força de Foi só um acidente

“Foi só um acidente” é um registo cinematográfico onde a denúncia política e social não está tão presente como em filmes anteriores do realizador, uma vez que, como o próprio diz, é feito de fora (sem o caráter autobiográfico tão vincado). Contudo, é, ainda assim, notória uma crítica ao regime teocrático do Irão. Só o facto de as mulheres do filme não usarem hijab, é logo um ato político evidente. Depois disso, são as experiências de tortura e prisão que denunciam, indiretamente, o regime do Irão. O próprio Eghal, quando confirma a sua identidade, orgulha-se do que fez e não se importa de morrer como mártir.
Assim, a forma de denúncia que Jafar Panahi encontrou é sobretudo indireta, por memórias – o realizador afirma mesmo que as personagens são ficcionais, mas que as histórias contadas por elas são inspiradas em eventos reais -, por pequenos gestos e por pequenos comentários.
Se merecia ganhar a Palma de Ouro? Sinceramente, diria que esta foi uma Palma de Ouro mais política que outra coisa. É certo que é preciso dar voz aos corajosos cineastas que desafiam regimes totalitários, mas, para ser sincero, esperava algo mais…
Ao lado de “O Agente Secreto”, “Foi só um acidente” é um filme que fica algo pela rama. Não ajudou o facto de o filme ter muitos avanços e recuos mas, sobretudo, porque não é uma história assim tão original. Certo que Jafar Panahi filmou em segredo e que o regime nunca lhe aprovaria este projeto mas sinto que o realizador podia ter ido mais além. É uma história demasiado ‘universal’ e comum que pouca identidade iraniana acaba por trazer. Até em Portugal Leonel Vieira fez “Julgamento” (2007) com um motivo semelhante…
Resistência, acima de tudo
Apesar de tudo, elogia-se no filme a capacidade de não ter medo de se dizer o que se pensa e de querer ser resistente a um regime de censura.
“Foi só um acidente” é um filme humanista, filosófico e que dá que pensar. Traz um lado realista forte mas é também pontuado com uma saudável loucura. É um filme para ver e refletir.
Foi só um acidente
Conclusão
- “Foi só um acidente” (2025, Jafar Panahi) foi o grande vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2025. Apesar de ser um filme ambientado no Irão e com referência ao regime do país, na verdade, trata-se de uma história universal onde se questiona se devemos ou não vingar os nossos agressores.
- Este é um filme com um olhar realista sobre um acontecimento criminal que se vai intensificando de forma dramática ao longo da narrativa.
- Apesar da sua qualidade técnica e de realização, sinto que o filme fica um pouco aquém do esperado e não traz grande originalidade; ou seja, o olhar / identidade do realizador ou um contexto mais iraniano não se sentem em pleno.

