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Estrada Fora, em análise

“Estrada Fora”, de Panah Panahi, acompanha uma viagem em família com Pantea Panahiha e Hassan Madjouni como figuras de destaque.

PELO DESERTO, NUMA FUGA SEM NOME!

ESTRADA FORA
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JADDE KHAKI (ESTRADA FORA), 2021, filme iraniano (que no original em farsi, língua persa, significa literalmente ESTRADA POEIRENTA) foi escrito, realizado e produzido por Panah Panahi. Trata-se do filho do cineasta veterano Jafar Panahi, cuja carreira foi subvertida pelas contradições geradas junto do poder e que o impediram de exercer a profissão, facto que ele por sua vez subverteu desobedecendo e realizando alguns filmes, que fez sair do país clandestinamente, como foi o caso de IN FILM NIST (ISTO NÃO É UM FILME), 2011 e SE ROKH (TRÊS ROSTOS), 2018. De facto, as referências ESTRADA FORA ou HIT THE ROAD acentuaram nesta obra, para efeitos de distribuição e exibição nacional e internacional, a noção de road movie como um dos expedientes narrativos que vive implícito no inicialmente algo misterioso percurso realizado por uma família muito peculiar, percurso que iremos apanhar já bem a meio daquilo que, numa visão mais imediata ou superficial, pode parecer uma viagem perfeitamente normal, mas no entanto com esse pequeno grãozinho de mistério inicial, ou seja, o de vermos quatro personagens humanas e uma canina no microcosmos de um carro, dito emprestado, a caminho de um local não identificado.

ESTRADA FORA
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Para além do mais, cada personagem parece encerrar em si um mundo até ali reprimido, mas que com o andar da carruagem parece querer explodir. São prolongados mas ruidosos os silêncios, assim como os modos de ser e estar que se revelam gradualmente nas manifestações individuais que incidem e corroem a aparente inércia do colectivo. Os actores (nos papéis de pai, mãe e dois filhos) vão gerando uma atmosfera densa, quilómetro após quilómetro, e acabam por compor a vontade própria de cada personagem num patamar ficcional de características existenciais, que de um modo singular nem sempre parece conciliável com a vontade dos restantes parceiros de “aventura”. Mas, afinal, que família vem a ser esta? Sentado na retaguarda, com a perna engessada, vemos o pai (Hassan Madjooni), homem carrancudo, barba de profeta, que rumina frases soltas sobre isto e aquilo, umas vezes porque sim e, outras… porque não. De um lado para o outro, e quase sempre irrequieto, o filho mais novo (Rayan Sarlak), rapazinho para uns sete/oito anos, muito falador e muito opinativo que esconde, contra o pedido da mãe, um telemóvel, não se percebe bem onde: se entre as pernas e aconchegado nas “joias da família” se num sítio onde o Sol não brilha. Enfim, vamos mais pela primeira hipótese, já que a mãe irá pegar nele com discrição mas sem nojo. Depois, arranja maneira de se ver livre do aparelho, cuja posse manifestamente proibiu ao miúdo e ao grupo durante aquela viagem. Será aliás este um primeiro e decisivo sinal de que aquela deslocação não se destina simplesmente a encontrar um bom sítio para um piquenique familiar. Há algo que se esconde e não parece ser coisa boa. No meio do pai e do filho, uma sossegadíssima cadela, Jessy, que foi salva pela família de um cruel abandono (lá como cá, há canalhas que não querem saber dos animais), um ser que realmente apetece levar para casa. No banco da frente, a mãe (Pantea Panahiha), mulher irrequieta que parece sintetizar na exuberância do seu comportamento as principais angústias do grupo, e por fim o condutor, o filho mais velho (Amin Simiar), jovem adulto cujo rosto nos revela que qualquer coisa o perturba. De facto, o seu olhar fixo no horizonte não demonstra apenas um natural cuidado na estrada, que por aquelas bandas desérticas dá quase para dirigir de olhos fechados. Há qualquer coisa mais do que o simples receio de entrar numa região desconhecida ou, pelo menos, difícil de controlar do ponto de vista da segurança de quem a visita, neste caso cidadãos habituados a rotinas urbanas. E a sua atitude e perplexidade denotam uma visível e crescente preocupação face ao destino que se começa a desvendar por meias palavras. Há uma nuvem sombria que escurece a sua alma e a dos que o acompanham, menos o irmão mais novo que nada sabe, até ao ponto em que os espectadores começam a adivinhar o que está em causa. Os sinais são claros, homens de moto com cabeças cobertas por capuzes aproximam-se e dão instruções. De repente já não estamos só no deserto. Estamos num outro mundo, e mais adiante iremos finalmente entrar por uma região de colinas verdejantes, que pensamos ser a fronteira com a Turquia. Não há muita informação, na verdade não precisamos, os dados foram lançados e nesta fase do processo narrativo já fizemos a agulha para um outro filme que ali se começou a delinear. Estamos disponíveis para aceitar as soluções arriscadas que se perfilam, já sem grandes dúvidas sobre o objectivo primeiro e último da viagem. Nesse local remoto estão outras famílias que aguardam o mesmo desenrolar das operações, que observam as mesmas estranhas movimentações que servem de ensaio e concretização da fuga a salto para o outro lado, para uma mais do que provável liberdade enganadora e perigosa. Mas as coisas são como são e o realizador não fez este filme para explicar as motivações nem o destino que se anuncia ou que prevalece para cada um dos protagonistas, nomeadamente dos que abandonam clandestinamente o seu próprio país. Há quem veja neste derradeiro segmento do filme o aflorar de um depoimento político, que seria a fuga em si. Muito sinceramente, vejo as coisas de outro modo. De volta a casa, a família atravessa mais uma vez o deserto, na verdade os membros da família que restam e ficaram no Irão. Para o que nos interessa, a mesma família que arranjou coragem para fazer o que pensou ser necessário, o grupo que regressa a casa depois da missão cumprida. O mesmo que presta uma última homenagem a Jessy, o mesmo que sabe que a vida continua umas vezes mais perto e outras mais longe dos lugares de exílio. Este, sim, pode ser o valor maior, a mais-valia de uma potencial mensagem política. Perto e longe, estamos juntos, e o deserto, onde o horizonte parece não ter fim, não nos limita face ao percurso da vida que queremos viver.

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No plano imagético, destaque maior para a fotografia de Amin Jafari. Escolha criteriosa dos enquadramentos que nos dão a sensação de assistirmos realmente a um filme que se desenrola ESTRADA FORA. No argumento, bom equilíbrio entre um requintado humor, muito iraniano, em que alguns capítulos são notáveis de perspicácia, como o episódio do ciclista que de forma manhosa aproveita um incidente com o carro para passar para a frente de uma corrida que dava direito a um prémio apetecível. De igual modo, humor subtil mas certeiro quando a cadelinha Jessy corre desalmada arrastando uma cadeira de plástico a que o dono a atou, pensando ele que era suficiente para ela ali ficar, quietinha. Pois sim! Humor subliminar na forma como são “dobradas” e introduzidas algumas canções pop dos anos setenta iranianos. Numa palavra, um filme sobre a fuga sem nome de um jovem sem nome, de uma família sem nome (curiosamente só a cadela se chama Jessy), mas que pode no projecto global do realizador ser isso mesmo, um filme onde podemos preencher o “vazio” dos nomes que faltam com os nomes que nós adivinhemos ou queiramos encaixar.

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Estrada Fora, em análise
ESTRADA FORA

Movie title: Jaddeh Khaki

Date published: 20 de July de 2022

Director(s): Panah Panahi

Actor(s): Pantea Panahiha, Hassan Madjouni, Rayan Sarlak, Amin Simiar

Genre: Drama, 2021, 93min

  • João Garção Borges - 60
60

Conclusão:

PRÓS: Primeira obra de um realizador que demonstra que o velho ditado “filho de peixe sabe nadar” tem alguma razão de ser. Na verdade, Panah Panahi fez o necessário e suficiente para poder enfrentar águas mais profundas, quem sabe até revoltas, já que nasceu no seio de uma família com pergaminhos no cinema iraniano e numerosas razões para erguer a sua voz.

CONTRA: Podia ser mais equilibrado ao nível da conjugação do individual no colectivo, na exposição das personagens que, no contexto geral da estrutura narrativa, não possuem necessariamente um protagonismo que se destaque do conjunto, um comportamento que justifique plenamente as diferentes idiossincrasias do grupo. Não se apresenta como uma fragilidade inerente ao puro exercício da realização, mas sim ao modo como o autor usou o argumento dispersando a eficácia da acção no confronto com a energia de cada personagem, inclusivamente das inúmeras secundárias que a família encontra pelo caminho. Excepto no excelente e exemplar caso do episódio com o ciclista, segmento de comédia sofisticada, a valer um 80.

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