"Isto Não é Um Filme" | © Alambique Filmes

Veneza em Casa | Isto Não É Um Filme

O nosso projeto Veneza em Casa chega ao fim com Jafar Panahi, realizador iraniano que há mais de uma década luta contra as autoridades do seu país. Em Julho deste ano, ele foi um de vários artistas apreendidos pela polícia num esforço censório e, por isso mesmo, não pode comparecer ao Festival de Veneza onde “No Bears” integra a competição oficial. Esta situação não é nova para o realizador que, em 2011, concebeu todo um documentário com base nas limitações da prisão domiciliária. “Isto Não É Um Filme” causou sensação aquando da estreia e continua a brilhar como um exemplo de cinema feito à revelia de forças opressivas.

Os problemas de Jafar Panahi com leis injustas não são novidade alguma. Tirando alguns problemas com autoridades islamofóbicas em aeroportos americanos, a primeira grande altercação sucedeu em 2003. Nessa ocasião, o realizador foi preso pela polícia iraniana e interrogado por horas a fio. Terminado o seu encarceramento temporário, diz o rumor que Panahi foi pressionado para sair do país. Em jeito teimoso e justiceiro, o artista permaneceu na pátria que o viu nascer. Como é evidente, os atos de revelia contra o regime fundamentalista em poder não cessaram depois de 2003.

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Passados uns anos, depois de se manifestar junto ao túmulo de uma jovem ativista morta a tiro, lá foi ele para trás das grades novamente. Dessa vez, o governo do Irão ainda cedeu a pressões estrangeiras que se haviam manifesto em defesa de Panahi. O realizador jamais voltaria a ter a mesma sorte. Em 2009, enquanto presidente do júri no Festival de Montreal, o cineasta mostrou apoio ao Movimento Verde Iraniano que havia planeado demonstrações na cidade canadiana. Poucos meses após essa ação de protesto, Panahi foi impedido de deixar o Irão.

Já em 2010, foi condenado a prisão domiciliária após o Ministério da Cultura se ter enterrado que o realizador planeava fazer um documentário sobre a muito disputada eleição do Presidente Mahmoud Ahmadinejad. Mais penoso que qualquer aprisionamento, contudo, foram os limites impostos a Panahi enquanto artista. Segundo a sentença promulgada a 20 de Dezembro de 2010, o Tribunal Revolucionário do Irão proibiu Jafar Panahi de trabalhar em cinema ou comparecer em entrevistas durante duas décadas.

Tais moções não colmataram a criatividade do cineasta, nem a sua vontade de trabalhar e se fazer ouvir. Por isso mesmo, ele dedicaria os anos seguintes a contornar as proibições impostas por lei, gravando obras singelas a partir de câmaras de vídeo digitais, usando seu apartamento como cenário ou mesmo um táxi frequentado por passageiros reais e ficcionados. Seu primeiro projeto do género foi o documentário atrevidamente chamado “Isto Não É Um Filme,” que teve de ser traficado para fora do Irão numa USB escondida dentro de um bolo.

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Estreada no Festival de Cannes, a fita foi ganhando as proporções de uma lenda passada de cinéfilo em cinéfilo, crescendo com cada nova história e rumor. O filme que não é filme é um exercício bastante singelo para tão épica reputação. Foi aparentemente rodado no apartamento de Panahi, com a companhia e ajuda do seu amigo coconspirador Motjaba Mirtahmasb. Alternando entre conversas e brincadeiras do faz-de-conta, comentários perante o ecrã da TV ou arriscadas viagens até aos portões da rua, “Isto Não É Um Filme” revela-se como cinema sobre a ausência de cinema.

Com menos floreados, trata-se do retrato psicológico do artista a quem a prática artística foi negada por um regime totalitário. As tonalidades variam como uma montanha-russa, podendo atingir o patamar de jogo entre velhos amigos antes de cair no desespero de um homem incapaz de expressar o que lhe vai na alma. A câmara é um objeto totémico e é salvação, é um meio de entender o mundo e articular o pensamento. Retirá-la das mãos do realizador é como se lhe cosessem a boca, como se lhe arrancassem os olhos, tapassem os ouvidos.

Uma das sequências mais marcantes encontra Panahi na euforia explicativa, tentando demonstrar o projeto em que trabalhava aquando da sentença. O tapete da sala de estar vira planta arquitetónica visível só para os olhos do artista e nós somos convidados a percecionar algo necessariamente inacessível. O momento é delirante, até que Panahi parece ganhar consciência de si mesmo. Júbilo apodrece como o fruto deixado no ramo além da maduração, o realizador perde o fôlego, o entusiasmo cessa e o sonho morre às mãos da realidade.

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Na história do cinema, raro é o retrato que melhor expressa a necessidade que o artista tem de criar, a dor lacerante que surge quando isso lhe é negado. Assim se vai desenrolando “Isto Não É Um Filme,” ora como diálogo ou diário, mas sempre em obstinado desafio para com o regime que amordaça, que censura, que ousa tentar calar as vozes que se levantam contra si. O melhor de tudo é quão concreto o projeto é, não obstante o caráter abstrato dessas muitas conversas sobre vazios – o perigo é sempre palpável, a ansiedade fiel companheira dos realizadores clandestinos. Tudo escala numa subida de suspense, como a corda que se retorce até rebentar de tensão acumulada. Há beleza no gesto de bravura, uma graça que enobrece o espírito de quem assim comunga com Jafar Panahi através do milagre da sétima arte.

“Isto Não É Um Filme” está disponível na FILMIN Portugal. Assinantes do serviço podem fazer streaming, mas o título também pode ser alugado.

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