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Onde Fica a Casa do Meu Amigo?, em análise

O clássico de Abbas Kiarostami, “Onde Fica a Casa do Meu Amigo?”, marca presença em território nacional pela Midas Filmes!

Se considerarmos apenas este ano e os dois anos anteriores, o contacto directo com o cinema iraniano no circuito comercial português, por comparação com outras cinematografias que não se inscrevem nos padrões dominantes da indústria pesada americana, constitui um acontecimento onde prevalece a qualidade e uma relativa mas significativa quantidade, facto que se deve sobretudo a um conjunto de distribuidoras nacionais, entre as quais se destacam a LEOPARDO FILMES, a ALAMBIQUE FILMES e a MIDAS FILMES, que estreia esta semana no grande ecrã nada menos do que KHERS NIST (URSOS NÃO HÁ), 2022, de Jafar Panahi, assim como duas longas-metragens do mestre Abbas Kiarostami (1940-2016), a ficção semi-documental KHANE-YE DOUST KODJAST? (ONDE FICA A CASA DO MEU AMIGO?), 1987, e o documentário MASHGH-E-SHAB (TRABALHOS DE CASA), 1989. Do primeiro filme, corajoso e urgente depoimento de um realizador impedido de exercer livremente a sua profissão, já aqui falámos em artigo próprio. Iremos agora debruçar-nos sobre os outros dois projectos, realizados por Abbas Kiarostami. Mesmo depois da sua morte, continua a ser uma das referências maiores da produção cinematográfica marcada por uma forte independência autoral, qualquer que seja a apreciação que do ponto de vista histórico possamos fazer da sua vida e obra no Irão ou no panorama internacional onde obteve um estatuto ímpar, similar ao de Manoel de Oliveira em Portugal ou de Ingmar Bergman na Suécia, o que nem sempre significa uma porta aberta para uma visão mais justa e iluminada das suas capacidades e aptidões.

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O HOMEM REALIZA, O REALIZADOR FILOSOFA…!

Onde Fica a Casa do Meu Amigo
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Os filmes que agora podemos ver em cópias novas restauradas referem-se a um período em que Abbas Kiarostami foi muito certamente buscar a inspiração numa experiência de grande impacto pedagógico que integrou e ajudou a criar no final dos anos 60, início dos anos 70. No início da sua carreira, após receber o diploma de Belas Artes pela Universidade de Teerão, Abbas Kiarostami dedicou-se enquanto artista gráfico a uma série de actividades como a publicidade, a composição de genéricos para o cinema e ilustrações de livros para crianças e adolescentes. Nesta altura já era igualmente conhecido como poeta, pintor e fotógrafo, e os seus primeiros passos no cinema deu-os como argumentista, montador, director artístico e produtor. De facto, já era então um membro activo do movimento designado por Nova Vaga Iraniana, cujo início podemos situar, com alguma latitude de análise, no ano em que se estreou A PELE DA SERPENTE, de Hajir Darioush, ou ainda O TIJOLO E O ESPELHO, de Ebrahim Golestan, ambos de 1964, primeiras etapas de uma viragem que mais para a frente se consolidou. Outros apontam, não já como precursor mas como fundador, o filme A VACA, 1969, de Dariush Mehrjui. Seja como for, importante será notar que Abbas Kiarostami não era um principiante quando em 1966 recebeu um convite para ingressar no Kanun (Instituto Para o Desenvolvimento Intelectual da Criança e do Adolescente), onde se encarregou de gerir o Departamento de Cinema.

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Finalmente, na sequência das suas experiências na referida instituição, iniciou-se como realizador na curta-metragem NAN VA KOUTCHEH (PÃO E RUA ESTREITA), 1970. Trata-se de uma ficção sobre um rapaz que, no caminho para casa, passa por uma via não muito larga onde dá de caras com um cão que não parece nada pacífico. Mas afinal era apenas fome canídea, e uns pedacinhos de pão resolvem a situação. Temas e personagens que podemos reconhecer sob numerosas variantes no corpo narrativo de muitas das suas futuras obras, quer longas quer curtas, leia-se, as do universo juvenil onde as crianças parecem estar sozinhas contra o mundo, seja o dos animais, seja o dos humanos (em especial o dos familiares mais próximos), seja igualmente o mundo natural, o da Terra que as viu nascer e onde estão inseridas, para o melhor e para o pior. Dito isto, quando olhamos para um filme como ONDE FICA A CASA DO MEU AMIGO? não podemos deixar de pensar na suprema mestria de Abbas Kiarostami ao polarizar a nossa atenção, desde o primeiro ao último fotograma, numa singela mas complexa história que vai ser conduzida do ponto de vista de uma criança, mas onde se revela por detrás um outro olhar inundado de poesia, o do adulto e autor do argumento. Como referi, vemos aqui o HOMEM que realiza e o REALIZADOR que filosofa, o artista que interpreta o belíssimo olhar de uma criança, Ahmad Ahmadpour (magnífica interpretação de Babak Ahmadpour, de fazer inveja a muitos veteranos) e cujo rosto a realização enquadra como se fosse um ícone profano. Para dar corpo e alma a esta ficção, que vai buscar a matéria essencial a uma realidade palpável no plano geográfico e humano, Abbas Kiarostami concebeu como principal conflito dramático o suave drama de Ahmad que obstinadamente quer fazer chegar ao amigo, Mohammad Reza Nematzadeh (outra memorável presença, apesar de breve, de Ahmed Ahmadpour), o caderno que aquele perdeu e que já lhe valera antes uma pesada repreensão por parte do professor e uma ameaça de expulsão da aula caso se repetisse. Precisamos dizer que os dois rapazinhos são companheiros de carteira numa escola onde imperam regras seculares que deviam reforçar nos alunos a necessidade de serem metódicos e disciplinados. Uma vez em casa, Ahmad sofre com a indiferença da mãe que, repetidas vezes, insiste para que Ahmad faça os deveres escolares antes de ir brincar. Esta será, durante poucos mas longos minutos, a barreira natural que impede Ahmad de agir e, pouco depois, veremos como ele acaba por engendrar uma solução para sair de casa e procurar alcançar a morada do amigo. Desesperado, opta pela subversão pura e simples das regras da disciplina materna. Dali para a frente iremos acompanhar as voltas e reviravoltas da sua fuga. E o que realmente vemos, para além do óbvio? Mais do que ver, o ritmo a que Abbas Kiarostami encena a relação da criança com o espaço circundante e os adultos que com ele se cruzam, o modo como enquadra os irradiantes olhos de Ahmad, os pormenores da encenação que nos dão a conhecer os actos que resultam do pensamento da criança, fazem-nos passar de meros observadores a cúmplices do caminho que ela vai percorrer desde a sua aldeia, Koker (situada no Norte do Irão, não muito longe das costas do Mar Cáspio), até uma aldeia vizinha, Poshteh, nem perto nem longe, e onde supostamente vive o colega Mohammad. Para isso vai em passo de corrida, não perde um minuto, porque os minutos do filme acompanham os do dia, e começa a anoitecer. Por outro lado, reforçando esta sensação de inquietude, a realização introduz diversos conflitos dramáticos, que numa primeira abordagem parecem banais e inocentes, e não o são de modo nenhum. Por exemplo, Ahmad deveria ir buscar pão para o jantar da família, mas arrisca-se a não cumprir o pedido da mãe se regressar atrasado do seu périplo. E o espectador sofre com ele só de pensar na confusão que se irá gerar por causa dessa falta. Mesmo antes de iniciar nova correria para chegar ao destino desejado, Ahmad vê-se a braços com o pedido do avô que de forma ardilosa lhe pede para ir buscar cigarros. Na verdade não precisava deles e, voltando-se para outro idoso, confessa que a sua intenção era fazer com que o neto compreendesse o significado do verbo obedecer, acrescentando, “para que seja alguém na vida”. Depois conta uma história, que ele julga exemplar, sobre a capacidade e necessidade de receber ordens e de as cumprir sem hesitações. E por instantes os espectadores ouvem pela voz do velho patriarca o que Abbas Kiarostami podia denunciar e criticar de outra maneira, ou seja, uma exposição da ideologia dominante nas regiões rurais e remotas do Irão. No fundo, não muito longe do formulário ideológico do poder reinante, antes e depois da Revolução de 1979. Tudo isto nos será dado como se fossem curvas e contracurvas semeadas aqui e além na acção, como as linhas ziguezagueantes dos caminhos que unem as duas aldeias. Expedientes destinados a alimentar a nossa ansiedade, paralela da que vemos apoderar-se do rapazinho que começa a desesperar por não descobrir quem lhe indique a casa do amigo. De rua em rua, de porta em porta, cada personagem que encontra, homens, mulheres, jovens ou idosos, são como figuras inscritas nas páginas do caderno da vida que Ahmad no seu esforço físico e mental folheia e descarta, para que possa entregar um simples e prosaico caderno escolar. Mesmo o senhor mais velho e cooperante que ajuda Ahmad e que sabe, finalmente, onde fica a casa do amigo, parece ser no seu filosófico vagar um factor contrário ao da peregrinação exemplar de Ahmad, que só vai acabar no dia seguinte e na escola quando o previsível mas claro gesto redentor acontece. De regresso a uma sala de aula onde o filme começou, o professor verifica os cadernos dos alunos, o de Ahmad e, logo a seguir, o do amigo Mohammad. Neste último, o caderno que permitiu o delinear das circunvoluções do argumento, para além do dever cumprido está uma flor que o velho senhor deu a Ahmad e que, por sua vez, Ahmad inseriu entre as folhas do caderno. Nessa altura ouvimos uma voz em off que diz: “Muito bem, rapaz”.

E digo eu, que não sou professor mas amante da sétima arte: “Muito bem, senhor Kiarostami”.

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Onde Fica a Casa do Meu Amigo?, em análise
Onde Fica a Casa do Meu Amigo

Movie title: Khane-ye doust kodjast?

Director(s): Abbas Kiarostami

Actor(s): Babek Ahmed Poor, Ahmed Ahmed Poor, Reza Nematzadeh, ,

Genre: Drama, 1987, 83min

  • João Garção Borges - 90
90

Conclusão:

PRÓS: ONDE FICA A CASA DO MEU AMIGO? apresenta-se como um clássico indiscutível da filmografia de Abbas Kiarostami, rodado numa região que sofreu há uns anos (mais precisamente a 21 de Junho de 1990) um sismo devastador em que morreram milhares de pessoas. Região, aliás, que foi palco de outras obras maiores do realizador como ZENDEGI VA DIGAR HICH (E A VIDA CONTINUA), 1992, e ZIRE DARAKHATAN ZEYTON (ATRAVÉS DAS OLIVEIRAS), 1994. Muitos consideram-na por isso a primeira parte da Trilogia de Koker. Designação que o realizador preferia ver no entanto atribuída a um outro conjunto que associasse aos dois últimos citados a sua obra-prima, TA’M-E GILAS (O SABOR DA CEREJA), 1997 (Palma de Ouro em Cannes, atribuída ex-aequo com UNAGI (A ENGUIA), do japonês Shoei Imamura). E o porquê desta preferência? Disse ele: “Por serem obras que incidem no valor inestimável da vida”.

Seja como for, ONDE FICA A CASA DO MEU AMIGO? possui mais do que suficientes razões para justificar uma descoberta ou um novo visionamento. Em primeiro lugar, o muito jovem actor protagonista, Babak Ahmadpour, e a sua imperial capacidade de nos fazer sentir as mais profundas emoções. Depois, a Direcção de Fotografia de Farhad Saba, cuja paleta de cores sobressai no restauro digital em 2K como se os fotogramas fossem pintados a pastel, cores de uma Natureza que se perfila igualmente como personagem. E, sem sombra de dúvida, a realização e o argumento de um nome maior da História do Cinema.

CONTRA: Nada.

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