Wagner Moura, um actor e um cidadão. ©José Vieira Mendes

Wagner Moura fala com a História (e não pede desculpa por isso)

Entre Cannes, Recife e Lisboa, Wagner Moura, o ator brasileiro do momento fala sem filtro sobre o Brasil, Hollywood, a democracia e o poder político da arte e lembra no LEFFEST que o cinema ainda é um ato de resistência.

Há artistas que falam como se lessem comunicados, com a voz de assessoria e alma de do produtor ou do realizador, mas não é o caso de Wagner Moura. Sentado no palco do Nimas no primeiro dia do LEFFEST 2025, a sorrir daquele jeito de quem já viu o inferno e voltou com ironia intacta, ele não precisava de cenário nem de adereços. Bastava-lhe estar. O festival homenageava-o com três filmes: O Agente Secreto, Marighella e Praia do Futuro e, na verdade, homenageava também um certo modo de fazer cinema: o que acredita que a arte não serve para entreter, mas para incomodar.

Pub
Lê Também:
5 filmes e séries com Wagner Moura para veres no streaming português

“O cinema e a democracia andam juntos”

A frase é de Wagner Moura e podia ser também o lema do festival. Disse-a sem ênfase, quase como quem diz o óbvio que o mundo teima em esquecer: “A cultura anda de mãos dadas com a democracia. Quanto mais democrático for o governo, mais espaço há para a arte. Durante o bolsonarismo, o cinema brasileiro foi perseguido, humilhado, quase destruído. Agora há um renascimento.” A palavra renascimento ficou a pairar na sala, meio esperança, meio aviso. Moura sabe do que fala. Foi censurado, boicotado, insultado e não arredou pé. Quando realizou Marighella, em 2019, o filme foi proibido, adiado, mutilado pela burocracia ideológica do poder. Hoje, vê-o projectado em Lisboa com a serenidade de quem sobreviveu ao incêndio. “Exibi-lo aqui foi como respirar liberdade”, recorda.

Um ator que recita dilemas

Wagner Moura
Wagner Moura: O regresso de uma estrela ao cinema brasileiro. ©Vitor Juca

Há atores que dizem falas Wagner Moura, declama dilemas. Nasceu em Salvador, em 1976, filho de professores, criado entre deslocações e livros. Estudou jornalismo porque acreditava que a verdade ainda tinha quem a defendesse e, no fundo, nunca abandonou essa profissão. Apenas trocou o microfone pela câmara. “Toda a minha carreira é uma tentativa de entender o mundo à minha volta”, confessa. “Eu não consigo separar arte e política. O cinema é a forma que encontrei de pensar o país e de sobreviver a ele.” A frase soa simples, mas é um diagnóstico inteiro sobre o Brasil contemporâneo.

O agente que desarma o segredo

O público português reencontra Wagner Moura agora em O Agente Secreto, de Kleber Mendonça Filho, o mesmo com quem partilha o que chama de “irmandade estética e política”. Moura sorri ao falar do título: “O Kleber gosta de brincar com o mistério. Ele nunca dá respostas únicas. O meu personagem é alguém que vive escondido, que carrega segredos, não da espionagem, mas da sobrevivência. É um agente do caos, porque a sua presença transforma a vida das pessoas à volta. É o oposto do James Bond.” A crítica aplaudiu-o em Cannes, onde recebeu o prémio de Melhor Ator. E agora, com o rumor dos Óscares a ganhar força, Moura reage com desarmante pragmatismo: “Eu torço. Mas, se não vier, já ganhámos. Fizemos um filme do Nordeste, com identidade própria. Isso, para mim, já é vitória.”

“Quando falo português, as palavras têm corpo”

O Efeito Oscar
O realizador, a produtora e Wagner Moura, de “O Agente Secreto”. ©Kléber Mendonça Filho

De todas as frases que Wagner Moura deixou no LEFFEST, talvez esta tenha sido a mais íntima: “Dei-me conta de que fazia doze anos que não atuava na minha língua. Isso é terrível para um ator brasileiro. Quando falo inglês ou espanhol, as palavras saem de mim, mas sem memória. Quando falo português, as palavras têm corpo, têm humanidade.” Havia ali uma emoção sem cálculo. O regresso à língua materna é também um regresso simbólico: à terra, à infância, à voz que o mundo global tantas vezes tenta apagar. “Foi libertador voltar a atuar em português”, resume.

Pub

De Capitão Nascimento a Pablo Escobar: o anti-herói do anti-herói

O Brasil e o mundo conheceram Wagner Moura como o Capitão Nascimento de Tropa de Elite, uma personagem que virou mito, meme e mal-entendido nacional. “O filme foi um soco”, admite. “Mas o que me interessava era expor a violência institucional. O problema é que muita gente preferiu ver um herói em vez de um espelho.” Com Tropa de Elite 2, a fama explodiu e o incómodo também. Moura percebeu cedo que a popularidade podia ser uma armadilha e tratou de fugir. Foi para Narcos, engordou, aprendeu espanhol e entrou na pele de Pablo Escobar, transformando o vilão de sempre numa tragédia humana. Hollywood abriu-lhe as portas, mas ele, fiel à coerência, recusou o catálogo fácil do “latino com pistola”. “Disse não a muita coisa. Prefiro papéis com alma, ainda que me deem menos dinheiro. É preciso escolher. E eu sempre escolhi o caminho mais difícil, porque é o único que me deixa dormir.”

Hollywood? Só se for com alma (e com sotaque)

Wagner Moura
Wagner Moura não fala como uma estrela de cinema. © José Vieira Mendes

A sua passagem pela América foi estratégica e crítica. Em Sergio, Wasp Network e Guerra Civil, Moura explora papéis que giram em torno da ética — homens divididos entre dever e verdade. E sempre com um cuidado quase obsessivo: manter o sotaque. “O sotaque é a minha identidade. Não vou apagá-lo para parecer mais vendável”, disse, arrancando aplausos da sala. Sobre o futuro da indústria, é lúcido e sarcástico: “O Trump pode ameaçar, mas não vai mexer a sério com Hollywood. No Brasil, Bolsonaro destruiu o cinema; nos EUA, a indústria é demasiado poderosa. Os problemas lá são outros: as greves, o streaming, a inteligência artificial. Isso sim é assustador — vai roubar emprego a muita gente, inclusive artistas.”

“O inimigo do povo não é o artista”

O tom muda quando Wagner Moura fala da extrema-direita. A voz desce, o olhar endurece: “O inimigo do povo não é o artista. É a elite financeira que paga pouco imposto e compra o discurso do ódio. Sem jornalismo e sem arte, não há democracia. E ambas estão ameaçadas. ”É impossível não sentir o eco de Marighella ali, o filme que o marcou e o definiu. “Enquanto houver gente que relativiza o horror, é preciso lembrar. O Brasil ainda é um país profundamente marcado pela brutalidade, pelo racismo e pelo autoritarismo. Mas também é um país de arte, de diversidade e de empatia. E o cinema é a forma mais bonita de mostrar isso.”

O díptico da resistência

No LEFFEST, a exibição conjunta de Marighella e O Agente Secreto parecia planeada por um curador invisível. Dois filmes, dois lados da mesma luta. “O Marighella era sobre quem quis derrubar o regime; O Agente Secreto é sobre quem tenta manter-se fiel aos seus valores quando tudo o obriga a desistir.” Entre ambos, um princípio que Moura repete como mantra: “Memória não é nostalgia é ferramenta de trabalho.” E é nisso que reside a sua grandeza: no compromisso de continuar a lembrar, mesmo quando lembrar dá trabalho.

Pub

Praia do Futuro: o exílio como espelho

Wagner moura
Moura fala de política como quem fala de uma personagem. © José Vieira Mendes

O terceiro vértice da homenagem, Praia do Futuro, de Karim Aïnouz, é o filme que explica Moura por dentro. “É o meu papel mais íntimo”, diz. “Aquele homem dividido entre Brasil e Alemanha sou eu, entre dois mundos, dois amores, duas verdades.” A obra, filmada em 2014, envelheceu bem, talvez porque fala de fronteiras morais e não geográficas. “O exílio, às vezes, é a única forma de continuar inteiro”, resume, com um sorriso que tem tanto de melancolia como de humor.

“Tenho 85% de DNA português”

O público riu, mas ele estava a falar a sério: “Outro dia fiz um teste de DNA e deu 85% português. Talvez isso explique o quanto me sinto bem aqui. Tenho muita vontade de filmar em Portugal. Admiro o Miguel Gomes, o Manoel de Oliveira, e gosto dessa forma portuguesa de filmar o tempo e o silêncio. É muito próxima da alma brasileira.” O comentário arrancou aplausos e uma piscadela de olho cúmplice a Paulo Branco, presente na sala: “Respeito imensamente o Paulo. É um produtor que não tem medo da palavra ‘arte’. Isso é raro.”

Pub

Entre o pessimismo e a fé

“Sou pessimista no presente, otimista no futuro.” Outra frase que resume Wagner Moura como quem resume um país inteiro. Pai de três, acredita que a geração dos filhos “já nasceu com menos medo e mais lucidez”. Entre respostas e pausas, vai desenhando uma filosofia simples: “O cinema é a arte de olhar o outro. E a política devia ser isso também.”

Tropa de Elite
Wagner Moura em “Tropa de Elite” (2008), de José Padilha. © Zazen Produções

Um ator, um realizador, um cidadão

A homenagem do LEFFEST 2025 não é apenas a um ator em estado de graça; é a um artista que insiste em pensar o seu tempo. Moura fala de política como quem fala de personagem, com a mesma atenção ao detalhe humano. É talvez por isso que o seu cinema se mantém de carne e nervo — porque recusa o conforto do cinismo. No fim da conferência, alguém pergunta se acredita que a arte pode mudar o mundo. Ele ri-se, olha para a plateia e devolve o golpe: “Não sei se muda o mundo. Mas muda quem o faz e quem o vê. Já é um bom começo.”

Pub

O homem que ainda acredita

Entre Cannes e o Oscar que talvez venha, Wagner Moura não fala como estrela: fala como cidadão que ainda acredita. Acredita na língua, na memória, na ética, no cinema que não pede desculpa por ter opinião. E talvez seja por isso que o LEFFEST 2025 o homenageia, não por glória, mas por coerência. Num tempo em que os heróis se vendem em merchandising e os vilões são algoritmos, Moura insiste em representar a dúvida. O Brasil agradece. Portugal também. E nós, espectadores, saímos do auditório com uma sensação rara: a de que o cinema, afinal, ainda serve para alguma coisa. “O cinema e a democracia andam juntos”, repetiu ele ao despedir-se. E nós acreditámos. Porque, vindo de Wagner Moura, soa menos a frase feita e mais a aviso urgente.

JVM

Pub

About The Author


Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *