69ª Berlinale (3) | Três Favoritos Improváveis
Além de quase nos mandarem para casa mais cedo, porque ‘One Second’, do chinês Zhan Yimou foi retirado da competição, a presença na competição de ‘Elisa y Marcela’, de Isabel Coixet, produzido pela Netflix ter mexido com os distribuidores alemães, existem três favoritos improváveis, quando faltam apenas três filmes para terminar uma das competição mais fracas dos últimos anos da Berlinale.
Caiu como uma ‘bomba’ aqui na Berlinale — em vinte anos da minha presença em festivais não me lembro de ter acontecido — facto de ‘One Second’, novo filme do realizador chinês Zhang Yimou (‘Milho Vermelho’ e ‘Herói’, estes premiados aqui em Berlim, mas entre tantos outros filmes apresentados em festivais) ter sido retirado da competição. Principalmente porque era o filme que encerrava a competição oficial desta Berlinale 69, e depois apesar das desculpas da direção do festival que alega que o filme não estará finalizado a tempo de ser apresentado, tudo leva a crer que presumivelmente isto aconteceu por pressões política da China.
Já que ao que consta ‘One Second’, de Zhang Yimou mergulha em factos algo polémicos sobre a revolução cultural maoista e o partido que desde o ano passado controla a produção cinematográfica não quer deixar sair para fora. É algo que não deixa de ser estranho sobre aquele que era quase considerado nos últimos anos, o realizador oficial do regime. Mas vamos aguardar a estreia do filme para breve, sem mais hipotéticas questões de censura. Entretanto quando tudo se esperava que estivesse mais ou menos pacificado com o fenómeno ‘Roma’, de Alfonso Curón, eis que também os exibidores alemães protestaram por estar na competição oficial ‘Elisa y Marcela’, da catalã Isabel Coixet (‘A Livraria), um filme que estreia hoje (quarta, 13), produzido pela Netflix. Os distribuidores alemães pedem que seja igualmente retirado da competição, pois ao contrário de ‘Roma’, vai estrear para apenas na plataforma ‘que se aproveita dos festivais para fazer o seu marketing e ‘que boicota os acordos internacionais relacionados com as janelas de estreia de um filme’, lê-se na missiva apresentada à direcção do festival. Dois problemas a culminar na direcção de Dieter Kosslick, que termina o seu mandato, nem sempre pacífico de 19 anos à frente da Berlinale.
Numa altura em que só faltam três filmes da competição (‘Elisa y Marcela’, de Isabel Coixet, ‘Synonyms’ de Nadav Lapid, ‘So Long, My Son’, de Wang Xiaoshuai) e dois extra concurso (‘Varda por Agnès’, de Agnès Varda e ‘Marighella’, de Wagner Moura), aparecem na tabelas da crítica internacional (e depois com um júri com bastante peso da crítica do que fazedores de cinema), três favoritos improváveis: o filme mongol ‘Öndög’, de Wang Quan’an, o macedónio ‘God Exist, Her Name is Petrunija’, de Teona Strugar Mitseska e o canadiano ‘Reportóires dês Villes Disparus’, de Denis Côté.
No centro de ‘Öndög’ de Wang Quan’an está uma mulher tenaz que vive na desabitada extensão da estepe. Esta pastora plena de auto-suficiência, conhecida por todos como a ‘dinossauro’, só tolera o seu vizinho afetuoso quando tem algum problema com seu rebanho. Qualquer coisa que vá além desta relação ela rejeita bruscamente. Os seus planos e futuro, estão relacionados com a paisagem solitária e os seus mitos. No entanto, uma mulher nua é encontrada assassinada nas estepes. Durante a noite, um jovem e inexperiente polícia tem que salvaguardar a cena do crime. Como não está familiarizado com os perigos da estepe, ‘a dinossauro’ vai protegê-lo e ao corpo. É então que essa decidida mulher de trinta e poucos anos que sabe manejar uma espingarda e afugentar os lobos, aquecida pelo álcool e pelo fogo contra o frio noturno se aproxima do jovem polícia. Na manhã seguinte, ambos vão às suas vidas. As belas paisagens e cores da estepe, são muito mais do que um pano de fundo para esta história que é na verdade um triângulo de afectos frios. Dir-se-ia que a própria realidade singular da estepe asiática se infiltra na narrativa e no rosto dos personagens. A história em si é igualmente cheia de momentos simples, cómicos e com reviravoltas surpreendentes. ‘Öndög’ de Wang Quan’an é também um filme que lida com temas existenciais e com mitos tradicionais como os dos fossilizados ovos de dinossauro. E tudo parece feito e dirigido de uma forma lindamente casual, por actores não-profissionais e uma pequena equipa de filmagens. É à partida o grande favorito este ‘Öndög’, que quer dizer precisamente em mongol: ovo.
Ao lado do filme mongol parece ter sido este ‘God Exist, Her Name is Petrunija’, de Teona Strugar Mitseska, uma co-produção europeia originalmente da Macedónia como aliás a sua jovem realizadora, que já mostrou outros filmes na Berlinale, mas em secções paralelas. É um filme que assenta igualmente nas influência social dos mitos e tradições dos países balcânicos ou da antiga-Jugoslávia. Teona Strugar Mitevska faz de ‘God Exist, Her Name is Petrunija’, uma sátira poderosa, mas ao mesmo tempo melancólica que questiona as mudanças democráticas na sociedade da Macedónia e sobretudo um questionamento do papel dos representantes da igreja, das autoridades judiciais e dos media. Petrunija (uma extraordinária estreia como actriz de Zorica Nusheva) estudou história, algo que parece pouco importante para um empregador e sobretudo para ela que já passou dos trinta anos e não consegue arranjar emprego. Como não consegue o posto de trabalho Petrunija decide dar o mergulho, no momento em que se comemora a Epifania: todos os anos, os jovens da cidade mergulham para recuperar a cruz sagrada que o padre atirou ao rio gelado. Mas desta vez, Petrunija é mais rápida que todos os outros e acaba segurando o troféu para as câmaras de televisão. É ela que durante um dia e uma noite defende a cruz, acompanhada de muita comoção pública e sobretudo da sua fabulosa mãe (Violeta Shapkovska) contra os fechados preconceitos de um mundo masculino e conservador. ‘God Exist, Her Name is Petrunija’, de Teona Strugar Mitseska gera uma imediata simpatia sobretudo pela forma como nos apaixonamos pela personagem, por esta rapariga determinada, que vai contra todas as tradições arcaicas e o oportunismo paralisante da sociedade onde vive, atrasada no tempo.
Por último ‘Reportóires dês Villes Disparus’ do canadiano Denis Côté (‘Vic + Flo Viram um Urso’) gerou menos consensos pela sua estranheza, como aliás a maioria dos seus filmes anteriores. Trata-se em primeiro lugar de uma adaptação de um livro com o mesmo título do escritor canadiano Laurence Olivier e cujo o tema se aproxima muito de ‘Thelma’, o filme de Joaquin Trier que explora e combina o imaginário fantástico e metafísico com temas prosaicos e familiares. O filme passa-se Irénée-les-Neiges é uma vila remota e gelada do Quebec, com apenas 215 habitantes, que vivem um certo isolamento. Quando o jovem Simon Dubé (Philippe Charette) morre num acidente de viação, a existência tranquila e rotineira dos habitantes torna-se algo descontrolada. As pessoas começam mesmo por se tornar relutantes a falar sobre os detalhes do acidente. Para os pais de Simon (Josée Deschênes e Jean-Michel Anctil) e seu irmão mais novo (Robert Naylor), o sentimento de perda, um sentido para a vida e tristeza, gradualmente parece espalhar-se para os outros habitantes da vila. Isto apesar do pragmatismo da autarca da vila (Diane Lavallée) a eterna , que defende que a vida continua para além daquela tragédia familiar que parece ter afectado todos. Mas na verdade os dias de inverno nevados e gelados que se estendem até ao infinito parecem não ajudar a levantar a moral. E depois algo de estranho parece abater-se sobre a região como uma véu e figuras misteriosas emergem no nevoeiro e cometem atos muito estranhos. Para intensificar ainda mais esta atmosfera irreal (ou surreal), Denis Côté filma em 16mm. O resultado é uma história estranhíssima de outro tempo com personagens e mortos que espreitam por detrás das imagens de celulóide de granulação grossa. ‘Reportóires dês Villes Disparus’ está precisamente entre aquilo que parece fantástico e vindo do outro mundo e um ambiente que até parece às vezes normal e familiar.
José Vieira Mendes (em Berlim)