LEFFEST ’19 | A Flor da Felicidade, em análise
Emily Beecham ganhou o prémio para Melhor Interpretação Feminina no Festival de Cannes deste ano. O filme que lhe conquistou a honra foi “A Flor da Felicidade” da realizadora austríaca Jessica Hausner. O filme está agora em competição no Lisbon & Sintra Film Festival.
Muitos são os cineastas que, depois de serem consagrados enquanto autores em ascensão, decidem experimentar a sorte em cinema de género. O terror, a ação e a ficção-científica trazem consigo uma série de códigos estéticos e narrativos que tanto impõem limites aos seus artistas, como lhes abrem novos caminhos de expressão. Isto para dizer que não é de admirar que, depois de uma série de dramas aclamados pela crítica, Jessica Hausner tenha tentado ver como se saía no panorama da ficção-científica.
Assim nasceu “A Flor da Felicidade”, a produção mais dispendiosa na filmografia da austríaca, assim como a sua primeira falada em inglês. Por aqui gostamos de celebrar a ambição e a audácia de realizadores dispostos a arriscar. Contudo, é impossível encarar esta experiência sem nela denotar o fedor acre do fracasso. Nem tudo é mau, como é evidente, sendo que uma cineasta tão prodigiosa e formalmente interessante como Hausner jamais assinará um filme meramente medíocre.
Aliás, basta ver a primeira cena da obra para nos apercebermos do engenho da imaginação que a concebeu. Tudo começa com a repetição de um movimento de câmara oscilante, olhando de cima para o cenário clínico de uma estufa. Dentro do laboratório botânico decorre uma apresentação de projeto, os cientistas promovem o seu trabalho e prometem grande fortuna e inovação com a sua mais recente criação. Graças a umas proezas de engenharia genética, Alice e Chris criaram uma flor cujo aroma promove a felicidade naqueles que a rodeiam.
Tais promessas podem ser feitas com profissionalismo estéril e sorrisos prometedores, mas toda a encenação faz da situação algo ominoso. O movimento da imagem, uma perspetiva das câmaras de segurança, sugere a presença demoníaca de um deus insensível. Por seu lado, os cenários minimalistas envenenam a narrativa com frieza desumana. É na banda-sonora, contudo, que Hausner melhor exemplifica os horrores da história, com cacofonias nipónicas e sibilos agudos a apunhalarem os ouvidos da audiência sem misericórdia. No meio disto há algo que não podia ser mais claro – o Mal vive naquelas flores.
Alice é a protagonista deste conto sobre os horrores que se abatem sobre as pessoas que ousam brincar aos deuses. Ela é o Frankenstein que, com esta flor, cria o seu mais malfadado monstro. Não que ela se aperceba disso, sendo que até chega a levar uma das suas plantas para casa, presenteando-a ao filho. É dele que vem o nome com que Alice batizou a sua mais recente experiência – Little Joe – e é ele que será uma das mais óbvias vítimas da flor. Maternidade pervertida é um dos muitos temas batidos que este conto de terror botânico tenta revitalizar sem grande sucesso.
Revelar mais seria injusto para com o filme e suas potenciais audiências. Fica só a referência que, para além do romance seminal de Mary Shelley, “A Flor da Felicidade” também vai buscar muito aos filmes de aliens invasores dos anos 50 e thrillers paranoicos da década de 70. De facto, uma boa maneira de descrever a obra de Hausner seria um cruzamento minimalista entre “A Invasão dos Violadores” e “A Loja dos Horrores”. Por outras palavras, apesar de se vestir como algo bizarro e peculiar, a narrativa deste filme é até bastante esquemática, para não dizer previsível.
Ser previsível não é sempre negativo, mas, neste caso, o problema transcende a mera previsibilidade. Não é só na experimentação de cinema de género que Hausner segue o exemplo de muitos cineastas que vieram antes dela. Outro elo a unir a austríaca a tantos outros é o facto de que os seus diálogos em inglês tendem a ser muito mais desleixados e óbvios que aqueles que ela mesma escreveu na sua língua materna. Há algo que se perde na tradução, nomeadamente a subtileza de temas que aqui é inexistente. Vindo este filme no encalço de longas-metragens como “Lourdes” e “Amour Fou”, este deslize de Jessica Hausner é particularmente desgostoso.
O que falha na narrativa sucede no formalismo. “A Flor da Felicidade” é um triunfo de hiper-estilização, sendo que o seu uso de cores vivas em contraste radical é tão ou mais impressionante que os pesadelos sónicos da banda-sonora. Os atores, por seu lado, andam meio perdidos entre a natureza chapada dos diálogos e a qualidade artificial da linguagem audiovisual. Nesse sentido, Beecham é a que melhor se safa, fazendo de Alice alguém com fortes tendências antissociais e recusando-se a simplificar a caracterização desta cientista trágica. Não podemos dizer que a vitória em Cannes tenha sido totalmente merecida, mas entendemos o fascínio do Júri com esta interpretação idiossincrática, tão abrasiva como o filme em que se insere.
A Flor da Felicidade, em análise
Movie title: Little Joe
Date published: 16 de November de 2019
Director(s): Jessica Hausner
Actor(s): Emily Beecham, Ben Wishaw, Kerry Fox, Kit Connor, Phénix Brossard, Leanne Best, Lindsay Duncan
Genre: Drama, Ficção-Científica, 2019, 105 min
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Cláudio Alves - 50
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José Vieira Mendes - 60
CONCLUSÃO:
“A Flor da Felicidade” é uma experiência meio fracassada de ficção-científica avant-garde. Em termos de design e som, o filme tem os seus méritos, mas o guião e realização afetada são difíceis de superar. Os atores fazem o que podem com o material, mas a maior parte deles parece incapaz de dominar as reviravoltas tonais do texto. Trata-se do primeiro passo em falso na carreira auspiciosa de Jessica Hausner.
O MELHOR: A banda-sonora e suas explosões de estridência dolorosa.
O PIOR: Os diálogos parecem ter sido vítimas de traduções múltiplas e limites linguísticos. As escolhas temáticas também são um tanto ou quanto perfuntórias.
CA