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A História da Minha Mulher, em análise

Chegou a hora de acompanhar “A História da Minha Mulher”, o mais recente filme de Ildikó Enyedi, e que conta com Léa Seydoux e Gijs Naber nos papéis principais.

HISTÓRIA DA MINHA MULHER OU DEAMBULAÇÕES DE UM NÁUFRAGO DA VIDA…?

A História da Minha Mulher
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Este filme começa no mar e acaba no mar. Pelo meio há a história de um holandês, Jakob Störr (Gijs Naber), comandante de marinha assombrado pelo comportamento da sua jovem mulher, a francesa Lizzy (Léa Seydoux), e pelos reflexos que as contradições do improvável casal introduzem na história das suas vidas, sobretudo ao longo da sua intermitente relação. Jakob possui aptidões que demonstra com versatilidade e determinação no exercício das suas diferentes actividades marítimas, mesmo perante as mais inesperadas adversidades. Precisamente, qualidades que fora do contexto profissional não consegue demonstrar na gestão dos assuntos comuns, sobretudo nas muitas encruzilhadas e impasses existenciais que condicionam de forma indelével as suas relações pessoais e sentimentais. Nas diferentes deambulações mundanas, este será o muro que irá separar as águas entre ele e Lizzy, condicionando assim o percurso de vida dos protagonistas.
Nos minutos iniciais de A FELESÉGEM TORTÉNETE (A HISTÓRIA DA MINHA MULHER), da realizadora húngara Ildikó Enyedi, estamos num navio de carga e, a partir do seu interior, olhamos para o horizonte seduzidos pela intensidade da luz azul do céu, a cor que sobressai com igual força das águas que ele atravessa. Destino daquele navio? Sabe-se lá. Enfim, suspeitamos que se dirija para um país luminoso, provavelmente situado no Mediterrâneo, como iremos comprovar pouco depois ao avistarmos as costas de Malta e o aproximar do porto da sua capital, a belíssima Valletta. Mas, nessa altura, isso é o que menos importa. Na verdade, pouco antes de desembarcar, o comandante conversa com o cozinheiro do navio a propósito de uma refeição que não lhe pareceu saudável, e como retorno da sua crítica recebe do veterano marinheiro das artes culinárias um conselho para lhe apaziguar as dores de estômago. Para grandes males grandes remédios, ou seja, neste caso a solução passaria por arranjar uma mulher e casar. Estranho conselho, dizemos nós. E ainda por cima dito sem ninguém se rir. De facto, nada nos indica estarmos aqui no domínio da comédia. Nem por sombras, a conversa não podia ser mais séria. Mas, mais uma vez, por enquanto não é isso que importa. O que realmente importa e vai pesar nos restantes longos minutos do filme enquanto expediente dramático para espoletar as grandes linhas desta ficção será o facto de o comandante interpretar ipsis verbis o que o cozinheiro dissera, aplicando pouco depois a receita prescrita quando entra num café para se reunir com um amigo a quem finalmente confessa o seu problema de saúde e a sua resolução, de modo directo e seco: “Decidi casar. Posso casar com a primeira mulher que entre aqui.” Mesmo sendo uma força de expressão, era um projecto estranho e arriscado de verbalizar em voz alta. Seja como for, meu dito, meu feito. Depois de uma entrada em falso e de um ligeiro momento de subtil humor, a realização desvia-nos o olhar para a entrada de uma mulher, esta muito mais bem posicionada para o papel de “feliz contemplada”, a quem Jakob vai mesmo propor esse bizarro casamento, ali mesmo e a frio. Trata-se de uma jovem francesa, a já citada Lizzy, que contra as expectativas mais racionais e com alguma manha caprichosa decide dizer sim, aceitando o desafio com um sorriso meio provocador. Enfim, pede apenas que não seja logo, mas dali a uma semana. Nesta altura, podíamos dizer que o argumento, ao fazer desta algo desvairada proposta e ainda mais desvairada resposta uma solução vencedora, podia e devia encontrar a forma mais eficaz de derramar as suas consequências, positivas ou negativas, no devir narrativo, atribuindo um gosto especial a uma história mais oportunista do que realista através de um je ne sais quoi de subversão dos costumes, similar ao sal e pimenta que se usa na polarização dos sabores escondidos de certos ingredientes. E de facto iremos dar conta nas sequências que se seguem, agora na cidade de Paris, a um conjunto de fait-divers que ajudam a situar estas duas personagens nas acolhedoras atmosferas, humanas e não só, dos cafés e salões dos vibrantes e loucos anos 20. Imagens e sons polvilhados de um sem número de personagens secundárias cuja função em alguns casos nunca será inteiramente definida. Indefinição que se prolonga no confronto com a sociedade ociosa da época que prometia muito mais do que finalmente nos será dado a ver no filme, pelo menos num plano de articulação e continuidade das relações pessoais que ali pareciam nascer. Excepção feita para a presença mais consistente e ameaçadora de uma figura meio canalha, meio patética, que passará gradualmente a ser a sombra que paira sobre a relação Jacob/Lizzy, ou seja, a personagem que levanta junto do marinheiro a suspeição de infidelidade da mulher. Personagem que será defendida numa espécie de piloto automático por Louis Garrel. Estabelecida a geografia variável cujos vértices são ele, Jakob, ela, Lizzy, e o outro, leia-se aqui, não necessariamente alguém com um rosto concreto mas antes uma suspeição fantasmática do provável adultério, Jakob procura nas frequentes deslocações marítimas e subsequentes ausências encontrar a motivação e o fulgor de um gesto de autêntico amor, o que obviamente esteve ausente no impulso inicial de se casar. Mas uma vez em casa ser-lhe-á sempre difícil encarar de frente e sem máscaras as fronteiras erguidas ao desejo, adiando uma paixão que na verdade não parece ser correspondida. Lizzy faz o que quer de Jakob, usando a sua juventude e a estudada, calculada falsa inocência para melhor o dominar, para melhor controlar o frágil fulgor sexual do marido, o desejo de um homem que hesita, que umas vezes decide e outras desiste, contaminado por uma angústia feita dos limites marginais de um ciúme que passo a passo o irá empurrar para os abismos sulfurosos da violência. Força bruta que por fim explode quando já não consegue reprimir o desespero emocional resultante das provocações da mulher.

A História da Minha Mulher
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Nos seus 169 minutos, mais de metade de A HISTÓRIA DA MINHA MULHER será dedicada a este jogo do gato e do rato. E o que fica na memória podia ser reduzido a uma outra metade. Podemos dizer que esta obra, no capítulo da Montagem, precisava de alguém com a capacidade e o distanciamento necessários para a reduzir a um projecto ficcional mais eficaz e de maior impacto, deixando de lado o material que nada acrescenta e só acumula um bom número de rotinas. Porque as sequências iniciais e finais são prova de que isso não era impossível. Mas, não acontecendo isso, na estrutura do que vemos entre o mar e a luz do princípio e o mar e a noite do fim, o que resta salientar são os pontos fortes que por si só justificam uma visão deste filme. Primeiro, a Direcção de Fotografia, quase sempre com a objectiva no lugar certo, o ponto de vista justo, o rigor depositado na maioria dos enquadramentos, a muito boa manipulação da luz e dos contrastes da sua vibrante paleta de cor. Em plena conjugação com a anterior, a Direcção Artística, sobretudo a muito boa reconstituição dos interiores e exteriores de uma época que foi para alguns particularmente elegante, reconstituição realizada em Malta, Hamburgo e Budapeste, onde se faz de conta que estamos em Paris. Em segundo lugar, a globalidade das sequências relacionadas com as viagens marítimas, desde a física e “democrática” interacção entre comandante e marinheiros, superior e subordinados, até aos momentos de maior intensidade dramática como o do fogo no navio de luxo onde Jakob joga literalmente a sua reputação como lobo-do-mar, ele que nem sequer gosta deste epíteto pronunciado na boca de estranhos que não sabem nem sonham as provações que qualquer marinheiro está sujeito a enfrentar.
Gostaríamos de dizer que não é pouco, mas sabe a pouco.

A História da Minha Mulher, em análise
A História da Minha Mulher Poster

Movie title: A feleségem története

Date published: 21 de March de 2022

Director(s): Ildikó Enyedi

Actor(s): Léa Seydoux, Gijs Naber, Louis Garrel

Genre: Drama, 2021, 169min

  • João Garção Borges - 50
50

Conclusão:

PRÓS: Direcção de Fotografia. Direcção Artística. Reconstituição de uma época moldada por um renascimento da chamada fúria de viver que habitualmente se segue aos períodos de guerra particularmente devastadores, como sucedeu nos anos 20 do sculo XX. São estes os principais valores de produção que justificam a minha classificação.

CONTRA: Em grande parte, a Montagem. Por um lado, na mera relação dinâmica com o material filmado, parece mostrar-se compatível com as principais opções da realização. Mas é aqui que reside um certo défice de economia na construção narrativa que, muito sinceramente, compromete de forma pesada a globalidade do projecto e o processo criativo que ele merecia, sobretudo nas sequências que deviam ser o núcleo central da proposta ficcional, a relação entre Jakob, Lizzy e as personagens de suporte, incluindo a protagonista de um desvio sentimental de Jakob por um amor fugaz, que prometia muito mais do que na verdade acaba por dar. Basta recordar que o subtítulo deste filme, THE FLOUDERINGS OF JACOB STORR IN SEVEN LESSONS, pode ser interpretado como as deambulações de Jakob Storr em sete lições… mas igualmente como o esforço para não se afundar nas águas escuras e revoltas que inundam a sua vida. Caramba, dava pano para mangas. Por último, não queria deixar de referir o que no filme persiste como um dos crónicos erros dos chamados compromissos de uma série de coproduções, nomeadamente europeias: mesmo quando a acção exigia a francofonia e aqui e além o uso do alemão e até do neerlandês, os produtores acabaram a promover o inglês como língua dominante. Uma opção que não resulta de modo algum e que visivelmente coloca aos actores dificuldades suplementares na composição e credibilização das suas personagens.

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One Response

  1. Fernando Lino 15 de Abril de 2022

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