Um drama psicológico e elegante inspirado na dona da l'Oreal. ©Netflix

“A Mulher Mais Rica do Mundo” e “Era Uma Vez em Gaza”: Entre herdeiras solitárias e faroestes em Gaza | Diário do Festival de Cannes 2025 (Dia 8)

A grande actriz francesa Isabelle Huppert em “A Mulher Mais Rica do Mundo” (Fora de Competição) e os realizadores palestinianos Irmãos Nasser em “Era Uma Vez em Gaza” (Un Certain Regard”), protagonizaram hoje dois momentos memoráveis no Festival de Cannes 2025. De um drama burguês à sátira palestiniana, o festival confronta-nos com o poder, a memória e a sobrevivência.

O peso do poder: Isabelle Huppert em “A Mulher Mais Rica do Mundo”

Estreado Fora de Competição, “A Mulher Mais Rica do Mundo”, mais uma produção da Netflix que vai chegar ao streaming muito em breve, marca o regresso de Thierry Klifa com um drama psicológico e elegante inspirado livremente nas figuras de Lilianne Bettencourt (mãe) Françoise Bettencourt-Meyers, filha herdeira da L’Oréal, sobre a qual já foi produzida uma série documental de 3 episódios, intitulada “O Caso Bettencourt: O Escândalo Com a Mulher Mais Rica do Mundo”, disponível ainda na Netflix. Desta vez, passamos para o domínio da ficção, mas à volta da mesma história e da realidade, apensas mudam os nomes dos personagens. Isabelle Huppert encarna Marianne, uma mulher enclausurada no luxo e na solidão, cujo império familiar se torna o pano de fundo para um lento colapso emocional.

“A Mulher Mais Rica do Mundo”
“A Mulher Mais Rica do Mundo”, vai estar em breve na Netflix. ©Netflix


As fracturas da burguesia francesa

Em “A Mulher Mais Rica do Mundo”, o desenvolver de uma estranha relação entre um carente Marianne e Pierre-Alain (Laurent Lafitte), um fotógrafo encantador, mas ao mesmo tempo um flagrante oportunista, vai revelando as fracturas de uma burguesia fria e opaca, onde a intimidade se confunde com interesses e as emoções são dissimuladas com perícia. Klifa evita o escândalo mediático já exposto na série documental e opta antes por uma narrativa contida, marcada por silêncios e interiores austeros. À excepção da excentricidade da figura de Pierre-Alain. Huppert, como é habitual, domina cada plano com uma combinação de fragilidade e crueldade latente. A câmara, cúmplice e contida, observa mais do que revela. O poder, aqui, não é libertação, mas clausura. Porém importa destacar as brilhantes interpretações da sempre discreta Marina Foïs, como filha da milionária,  Laurent Lafitte — um actor verdadeiramente em ascensão no cinema francês, que foi, aliás o apresentador da gala de abertura do Festival de Cannes 2025 —, no papel do fotógrafo de ‘socialites’ e amigo íntimo de Marianne, bem como Raphaël Personnaz, — tem umas flagrantes parecenças com Alain Delon — no elegante mordomo Jerôme, que acaba por ser um elemento chave em toda a trama da ficção e da realidade.

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A Mulher Mais Rica do Mundo
Isabelle Huppert e Marina Foïs, mãe e filha ©Netflix

Uma tragédia íntima

“Estas personagens são monstruosas e infantis”, disse Klifa o realizador de “A Mulher Mais Rica do Mundo”, em conferência. “Vivem marcadas por uma solidão que disfarçam com o verniz do poder.” O resultado é uma tragédia íntima, em câmara lenta, que observa o mundo dos muito ricos sem ornamentações nem moralismo.


“Era Uma Vez em Gaza”, transforma a tragédia em farsa

Apresentado na secção Un Certain Regard, “Era Uma Vez em Gaza” foi uma das surpresas mais ousadas e desconcertantes desta edição, embora até agora tenha sido quase impossível acompanhar as sessões desta competição. Ao contrário dos ambiente chique, de “A Mulher Mais Rica do Mundo”, os irmãos Tarzan e Arab Nasser assinam um western urbano e político que mistura humor negro com crítica feroz à ocupação israelita. Gaza torna-se aqui palco de uma tragicomédia onde o falafel serve para esconder droga, e o absurdo do quotidiano é tão sufocante quanto libertador.

Uma dupla de protagonistas improvável

“Era Uma Vez em Gaza”, acompanha dois protagonistas improváveis: Yahya, um estudante ingénuo, e Osama, vendedor de rua e pequeno contrabandista. Entre perseguições, corrupção e tiros fora de campo, o riso emerge como única forma de resistência possível. Apesar da leveza aparente, o contexto é tudo menos cómico: a ocupação militar, os bombardeamentos constantes e os planos de destruição violenta dos edifícios, estão sempre no horizonte.


Os paradoxos do quotidiano em Gaza

Mas os Nasser no filme, nunca cedem ao panfleto pró-Palestina, embora no discurso inicial de apresentação tenham apelado com veemência para o fim do conflito e fim do ‘genocídio palestiniano’, com farto apoio do público. Preferiram antes expor os paradoxos do terrível quotidiano da população palestiniana, com afeto e ironia, como logo no início ao começarem com o discurso de Donald Trump de transformar a Palestina, numa Riviera do Médio Oriente, um bom local de fárias para a “A Mulher Mais Rica do Mundo”. “Era Uma Vez em Gaza” é produzido por uma vasta rede internacional de produtores — com destaque para a participação portuguesa da Ukbar Filmes e da RTP  —, o filme confirma o talento dos Nasser como cronistas visuais de um território tantas vezes reduzido a imagens violentas do conflito e guerra psicológica .

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A tragédia transformada em farsa. ©Festival de Cannes/Divulgação

Riqueza e resistência num espelho de contrastes

“A Mulher Mais Rica do Mundo” e “Era Uma Vez em Gaza” parecem habitar universos opostos — um feito de salões parisienses ricos e silenciosos, o outro de ruas poeirentas e caos imprevisível. No entanto, ambos revelam as prisões invisíveis do nosso tempo: seja o isolamento do poder, seja a sobrevivência sob opressão. Neste Cannes 2025, o cinema continua a ser o lugar onde olhamos o mundo com olhos desarmados — mesmo quando tudo parece armado até aos dentes.

JVM



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