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O Meu Nome é Alfred Hitchcock, a Crítica | Mark Cousins examina o legado do mestre do suspense

Em “O Meu Nome é Alfred Hitchcock”, Mark Cousins dá a conhecer aos espectadores a grande obra de um dos realizadores mais influentes da história do cinema.

Tudo já foi dito, escrito e publicado sobre a obra de Alfred Hitchcock? De modo nenhum! De facto, foram muitos os livros publicados com filmografias comentadas e ensaios de maior ou menor profundidade sobre um dos maiores cineastas de sempre. Muitos foram os documentários concebidos a partir de abordagens mais ou menos incisivas e, no campo cinematográfico e audiovisual, até obras de ficção foram produzidas com algum sucesso sobre a sua vida e obra. Mas como sucede com o legado dos grandes mestres das artes e letras cuja herança perdura na nossa memória por muitos e bons anos, há sempre mais qualquer coisa que se pode dizer, escrever e defender numa perspectiva pessoal, literária e, para o que nos interessa aqui analisar, cinematograficamente inovadora.

UMA CARREIRA SUBLIME E UMA VOZ DO OUTRO MUNDO…!

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Pois bem, passemos então a falar de “My Name is Alfred Hitchcock” (O Meu Nome é Alfred Hitchcock), 2022, ensaio audiovisual de Mark Cousins. Deste realizador irlandês estreou recentemente em Portugal uma interessante e deveras urgente abordagem crítica da génese do fascismo em Itália, o corajoso Marcia su Roma (Marcha Sobre Roma), 2022. Do mesmo autor vimos há uns anos um outro ensaio similar ao que agora nos é dado conhecer, sobretudo no que diz respeito aos pressupostos ficcionais inseridos numa lógica estrutural de documentário, o muito interessante The Eyes of Orson Welles” (Os Olhos de Orson Welles), 2018. 

O Meu Nome é Alfred Hitchcock
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Em “O Meu Nome é Alfred Hitchcock” (que em boa hora a produtora e distribuidora Zero em Comportamento disponibiliza em sala), Mark Cousins quer fazer-nos crer que quem escreveu o argumento e gravou a voz que ouvimos do início até ao genérico final foi o próprio Alfred Hitchcock. Numa primeira visão, até podia ser que a voz fosse obtida a partir de uma montagem de declarações suas, exercício necessariamente complexo mas sem dúvida fascinante, já que existem mil e uma gravações de depoimentos que felizmente se guardam em inúmeros arquivos. Basta lembrar a este propósito a magnífica entrevista dada a François Truffaut nos anos sessenta, uma das peças essenciais para melhor compreender a personalidade do autor e a metodologia fílmica usada numa parte significativa da obra do cineasta nascido em Londres a 13 de Agosto de 1899 e falecido a 29 de Abril de 1980. Mas depressa nos apercebemos que aquilo que lemos no genérico inicial, em primeiro lugar “Directed and Photographed by Mark Cousins” (Realizado e Fotografado por Mark Cousins) e logo a seguir “Written and Voiced by Alfred Hitchcock” (Escrito e Falado por Alfred Hitchcock) não passa, no segundo caso, de uma requintada mentira.


Na verdade, uma deliciosa mentira a que a imitação vocal, absolutamente primorosa do actor e comediante Alistair McGowan, empresta uma pitada de assombração, como se a voz do apelidado mestre do suspense renascesse a partir do além. Mas não só, há mesmo a intenção de fazer passar a ideia de que ele pudesse ser nosso contemporâneo pelo modo como se refere a certas idiossincrasias, hábitos, vícios e rotinas do mundo de hoje. Seja como for, parafraseando o nome do romance que esteve na origem do genial argumento da obra-prima intitulada Vertigo” (A Mulher que Viveu Duas Vezes), 1958, na prática estamos perante uma voz e um discurso com origem “D’entre Les Morts”, desde o seio dos mortos. Repito, mentira que o documentarista leva ao extremo quando faz de conta que Alfred Hitchcock se engana e pede para repetir a gravação de modo a corrigir uma palavra ou uma frase. E, para acentuar ainda mais o falso efeito de real, ouve-se a voz de Mark Cousins, no estúdio de som mas sempre fora de campo, responder: “Yes, Mr. Hitchcock.

O Meu Nome é Alfred Hitchcock
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Enfim, artifícios que são engraçados e expedientes que não perturbam o essencial do que vemos e ouvimos, mas que afinal não passam disso mesmo, momentos polvilhados de um certo humor, gags mais ou menos inofensivos mas desnecessários. Como são descartáveis as imagens e sons da actualidade que situam uma boa parte dos locais que de um modo ou de outro estão relacionados com a vida e carreira de Alfred Hitchcock, assim como ainda um ou outro aspecto que se quer sublinhar da narração, em geral planos mal enquadrados, por vezes repetitivos e a maior parte deles a provocar os nossos sentidos com a sensação de estranheza que normalmente acompanha o que está a mais e não faz falta nenhuma. Meu caro Mark Cousins, aqui fica um conselho de amigo que sinceramente aprecia o que fazes e por isso fica perplexo face a certas opções “artísticas”: por exemplo, corta a maioria dos planos da menina asiática a olhar para a objectiva, mais os planos de Londres com ângulos que aqui e além nem sequer respeitam a regra básica da Direcção de Fotografia que procura evitar a distorção das verticais, ou seja, aquilo que neste filme não acrescenta nada que faça realmente falta ao que realmente importa mostrar. E havia mais para dizer, mas ficam apenas estes dois e breves reparos. Diga-se que já no “Marcha Sobre Roma” se fazia sentir o mesmo “estilo” a querer ser arte e ensaio, mas que apenas resulta em ruído visual de segunda ordem, digamos assim.

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Felizmente, cada vez que Mark Cousins investe o olhar analítico e crítico na vasta obra de Alfred Hitchcock, ou seja, em noventa por cento da matéria de “O Meu Nome é Alfred Hitchcock”, as suas propostas de reflexão são bem mais sólidas, valem a pena ser observadas e na sua grande maioria são cuidadosamente sustentadas com a inserção e montagem de significativos excertos selecionados de entre os numerosos filmes do mestre. Todos eles devidamente restaurados, num regalo visual que faz justiça na actualidade aos inegáveis valores de produção de outras eras. E são múltiplos esses exemplos que dão corpo aos diferentes capítulos em que se divide o filme, a saber, Escape, Desire, Loneliness, Time, Fulfilment and Height (Fuga, Desejo, Solidão, Tempo, Satisfação e Altura).

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E bem concebida é a sua contextualização dramática e histórica, permitindo ao projecto adquirir uma dimensão lúdica e didáctica, provavelmente mais útil para quem não seja um especialista de cinema ou um indefectível da obra muda e sonora de Alfred Hitchcock, podendo mesmo ser encarado junto desse público como um sempre renovado convite dirigido ao espectador que goste de cinema com C grande no sentido de ele ver, rever ou descobrir algo mais para além da superfície das coisas. Tudo aquilo que os mais avisados nesta arte do cinema há muito já encontraram e gostam de continuar a encontrar na extensa filmografia do realizador de Rear Window” (Janela Indiscreta), 1954, ou North by Northwest” (Intriga Internacional), 1959.

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Em suma, para uns uma excelente introdução para conhecer melhor uma obra eterna, e para outros o prazer de mais uma vez poder especular sobre as mil e uma delícias que se podem usufruir numa obra riquíssima e que, pela minha parte, revisito com ampla e entusiástica frequência.

O Meu Nome é Alfred Hitchcock, a Crítica

Movie title: My Name Is Alfred Hitchcock

Director(s): Mark Cousins

Genre: Documentário, 2022, 120min

  • João Garção Borges - 75
75

Conclusão:

PRÓS: Tudo o que disse, e ainda a certeza de que os seus pressupostos estruturais, documentais e ficcionais podem ser um incentivo para que mais e mais segmentos do grande público olhem para uma obra carregada de motivos de interesse, que não envelheceu mal e perdura como uma das mais excitantes e populares aventuras profissionais e pessoais da História Mundial do Cinema.

CONTRA: Já o disse e repito aqui, com a devida mágoa: se Mark Cousins não caísse no erro de fotografar a realidade contemporânea de forma vaga e friamente digital e se não usasse os planos fixos do mestre como uma espécie de separadores sem alma das matérias abordadas, em vez do 75/100 o filme levava seguramente um 95/100. Dito isto, por fim aqui fica o meu apelo sincero: não deixem de ir ver “O Meu Nome é Alfred Hitchcock”, porque o melhor do que lá está deve-se a ele, o homem que fala e de quem se fala.

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