© Oslo Pictures

A Pior Pessoa do Mundo, em análise

“A Pior Pessoa do Mundo”, um dos principais nomeados aos Óscares da Academia em 2022 chega aos cinemas nacionais. Será que este projecto de Joachim Trier chamou à atenção?

O QUE FAZ CORRER JULIE…?

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Do realizador de VERDENS VERSTE MENNESKE (A PIOR PESSOA DO MUNDO), 2021, o norueguês Joachim Trier, já vimos antes REPRISE, produção de 2006, e OSLO, AUGUST 31st (OSLO, 31 DE AGOSTO), de 2011. Para os devidos efeitos, cada um deles faz parte do que podemos designar a Trilogia de Oslo. Esta identificação genérica não significa apenas uma associação ao percurso realizado por um conjunto de personagens na capital da Noruega e no pleno exercício da sua euforia geracional, o que seria mais ou menos óbvio para quem viu os filmes, mas sim ao facto das suas personagens possuírem uma presença dialéctica e muito particular no interior dos caminhos cruzados daquela cidade. Como se as volumetrias do espaço urbano conjugadas com o lado orgânico dos seus espaços naturais fosse uma outra personagem que só por si atribuísse um sentido, um valor específico, a uma certa maneira de ser e estar no Norte da Europa e no Século XXI. Uma plataforma comum para homens e mulheres, sobretudo jovens, integrados num contexto económico, social e cultural próprios e numa sociedade onde o equilíbrio existencial e o bem-estar, ao contrário do que se possa imaginar, passa pela luta constante entre os sentimentos emergentes e algo libertários de emancipação e a fria realidade onde prevalece algum conformismo no contexto da cidadania, manifestado no cálculo das potenciais carreiras, para já não falar na manutenção surda ou aberta de valores ideológicos oriundos de outras eras, sobretudo num país que ficou, não há muitos anos, subitamente rico com a descoberta e exploração do petróleo e onde muitos fantasmas do anterior e frágil desenvolvimento, quer queiram quer não, ficaram para sempre guardados nas memórias de, por um lado, quem viveu o antes e, por outro, de quem, sem o viver, herdou sem grandes sacrifícios o mais confortável depois.

The Worst Person in the World
A Pior Pessoa do Mundo © Alambique / Screenings Funchal

Nesta relação de forças entre passado e presente, nada mais natural do que encontrar uma rapariga, no limiar dos seus 30 anos, completamente voltada para o futuro, muito segura no seu desejo de independência, mas indecisa sobre o rumo a seguir. Não admira assim que esta jovem, Julie, personagem admiravelmente interpretada por Renate Reinsve, desempenhe aqui o papel de eixo central de uma narrativa segmentada em 12 capítulos, mais um prólogo e um epílogo, através dos quais damos conta da sua relação com um grupo de homens muito diferentes entre si. Diversidade de escolhas que em grande parte deriva do seu desejo de controlo sobre o seu comportamento pessoal face ao outro e aos outros, num universo onde por detrás de algumas máscaras sobressai uma colorida pluralidade de comportamentos. Desde o pai, com quem mantém uma relação difícil que contamina o resto das suas relações familiares, até um namorado um pouco mais velho, autor de bandas desenhadas a roçar os limites do grafismo pornográfico que, apesar de bem sucedido no mercado local, não se livra da acusação feita por feministas militantes de ser um reles sexista. Na verdade, as pranchas onde a figura lasciva de um lince aparece no filme em breves sequências animadas fazem lembrar a longínqua incursão de Robert Crumb pela mesma área do erotismo radical, onde deu corpo e voz ao famoso e infame felino chamado FRITZ THE CAT. No meio desta relação, Julie irá procurar conforto passageiro, mais físico do que espiritual, na pessoa de um modelo masculino que ela encontra numa sessão fotográfica e numa das suas sucessivas encarnações profissionais, para acabar com um rapaz, mais da sua idade, numa perspectiva um pouco mais carnal do que intelectual. De facto, Julie, na sua busca por um lugar que lhe permita dominar as regras do seu próprio jogo, começa por ser estudante de medicina, muda de agulha para seguir psicologia e, finalmente, acaba a ganhar a vida numa livraria. Em casa, alimenta a ideia de ser escritora e escolhe para o primeiro artigo que escreve o significativo título ORAL SEX IN THE AGE OF #MeTOO. Desta forma parece querer desafiar o autor de BD seu companheiro – que afinal a elogia e encoraja – no mesmo patamar de reconhecimento, o da provocação literária.

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Será, aliás, uma constante do percurso de Julie o confronto directo e por vezes demasiado cru com os outros. Ela gosta de experimentar as fronteiras, de destruir os limites e as barreiras que a possam condicionar. Há uma espécie de vertigem que se instala nela quando num dos mais acutilantes segmentos, designado TRAIÇÃO, entra por uma festa dentro sem ser convidada. Na sua subversiva descontracção, vai emborcando bebidas alcoólicas em doses generosas até encontrar um rapaz que parecia um pouco deslocado naquele ambiente mas que já dera conta das provocações de Julie, nomeadamente quando ela belisca a sensibilidade de uma convidada com ar de mãezinha burguesa ao mencionar a perigosa influência dos mimos dados aos filhos na futura dependência de drogas. De repente, pensamos até que aquele rapaz possa ser outro intruso e que Julie seja a presa ideal para cair numa qualquer armadilha. Depois, essa questão passa para segundo plano quando, pelo contrário, vemos Julie a usar os seus dotes de sedução, como a caçadora Diana da mitologia, ou então como uma aranha pronta a devorar a sua presa, iniciando para isso um jogo de contactos estranho e algo masoquista, sobretudo quando a certa altura se lembra de cheirar o suor do rapaz. Depois morde-lhe o braço, e a seguir a montagem fragmenta a narrativa e atira os dois improváveis amantes para um quarto onde acabam a noite antes de rumarem cada um a sua casa, sem mais nada de especial acontecer. Nada? Bom, não é bem assim. O realizador e argumentista irão prosseguir a subversão da relação inicial com o rapaz mais velho, Aksel (o excelente Anders Danielsen Lie) para introduzir nos capítulos que se seguem o lado material do rapaz mais novo, Eivind (Herbert Nordrum), onde o sexo passa a ser mais visceral. Aliás, sexo que nunca esteve ausente. Só que até ali não fora representado, digamos, de forma pura e dura. Seja como for, a realização não se limita a registar de forma linear a esperada ruptura com Aksel, estilo Julie fala com Aksel, este cai em si, resiste em vão mas acaba por fazer sexo com Julie. Não. Joachim Trier e o seu co-argumentista, Eskil Vogt, mostram-nos o contrário do que poderia ser um rotineiro campo contra-campo, dando-nos a ver um dos melhores efeitos dramáticos e visuais, diríamos mesmo melodramáticos. Julie está na cozinha com Aksel, acende uma luz e o mundo fica parado. Sai de casa e atravessa radiante e radiosa as ruas de Oslo. Só ela se movimenta num passo rápido pelas ruas da cidade que adquirem assim uma atmosfera feérica e onírica. Ela deambula olhando em seu redor, como quem não acredita no que está a acontecer mas sabe que algo assim podia acontecer. Percurso ao longo do qual procura controlar aquela proto-realidade a seu favor, no fundo para ir ao encontro daquele com quem, pelo menos, na altura queria passar a viver. Irá encontrar o rapaz do “dia seguinte” num café. Ele e ela são os únicos que se movem. Depois, sempre em pleno contraste com a “congelada” realidade circundante, selam um pacto de união que irá ser desenvolvido nos capítulos posteriores. De igual modo, os autores de A PIOR PESSOA DO MUNDO decidem não propriamente começar, isso já o fizeram antes e desde o início, mas antes acentuar uma espécie de acerto de contas com algumas personagens contaminadas por uma série de idiossincrasias pseudo-modernas, que na verdade não se encontram apenas nos países nórdicos. Por exemplo, no divertido e cáustico segmento BAD TIMING e, sobretudo no FINNMARK HIGHLANDS, veremos como Eivind e a sua namorada, sim, aquela que ele irá abandonar a favor de Julie, lidam com as questões prementes e omnipresentes nos discursos redentores dos profetas do politicamente correcto, como sejam as alterações climáticas, a conservação da Natureza, a fome, as guerras, a dignidade perdida e achada das populações nativas. Tudo, claro está, sem esquecer o yoga… essa preciosa ajuda para aliviar o stress de quem quer carregar nas costas os grandes desafios da Humanidade e os grandes problemas do mundo, pelo menos na perspectiva mediática, mas claro está sem perder pitada do que se publica nas redes sociais e, digo eu, a happy hour da moda. Humor subtil, que atinge o alvo na perfeição. Mais para a frente e noutro capítulo, voltamos a ver o artista das novelas gráficas a insultar duas representantes da que se pode considerar a nova censura imposta pelo feminismo sectário de cariz meramente identitário. Isto numa entrevista para a rádio que Julie irá descobrir por mero acaso na versão audiovisual, facto que irá despertar nela, mais uma vez, o anseio de mudar o rumo da sua vida, consubstanciando essa mudança numa reaproximação a Aksel, numa altura em que para este o fim da linha parece mais do que inevitável. No final, perante o destino de Aksel, resta a Julie a pacificação da sua consciência, adquirida nas voltas e reviravoltas do seu percurso existencial. Uma mulher para quem o confronto com os outros e a cidade emerge agora na verdade do encontro consigo própria, na recusa de aceitar as coisas como elas são. Nomeadamente ao sentir no seu corpo as possíveis grilhetas da maternidade. Uma Julie mais adulta que passa a ser uma observadora do real, para o questionar sem interferências exteriores. Uma mulher que decide o modo de ser e estar, sem deixar de perguntar “quem eu sou” e “para onde vou”. Na verdade, aos espectadores fica a sensação que ela vai passar a responder a essas perguntas, sozinha e sem medo, dizendo algo como “Eu sou aquela que não desisto. Nem que seja por um dia, agarro a vida e sigo em frente”.

A Pior Pessoa do Mundo
© Alambique
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Peça fundamental deste mecanismo ficcional, a prestação cristalina e camaleónica de Renate Reinsve. Não por acaso, sublinhada no Festival de Cannes de 2021 com o Prémio para a Melhor Actriz. Mas Anders Danielsen Lie, no papel de Aksel, não lhe fica atrás. Podemos dizer que atinge mesmo um patamar de igual eficácia nas sequências finais, quando o anterior homem confiante e maduro enfrenta a fragilidade da condição humana.

A Pior Pessoa do Mundo, em análise
A Pior Pessoa do Mundo

Movie title: A Pior Pessoa do Mundo

Date published: 9 de February de 2022

Director(s): Joachim Trier

Actor(s): Renate Reinsve, Anders Danielsen Lie, Maria Grazia Di Meo, Hans Olav Brenner

Genre: Comédia, Drama, Romance, 2021, 127 min

  • João Garção Borges - 75
  • Maggie Silva - 81
  • Cláudio Alves - 80
79

Conclusão:

PRÓS: Está nomeado para os BAFTA, nas categorias Melhor Filme em Língua Estrangeira e Melhor Actriz. Entre muitos candidatos, foi nomeado para o Óscar de Melhor Filme de Produção Estrangeira, assim como para o Óscar de Melhor Argumento Original. Nada mau. Porque neste último caso não se esperava muito mais abertura por parte das nomeações, habitualmente mais próximas dos valores de produção Made in USA. Logo se verá, nos próximos dias 13 e 27 de Março.

Independentemente do futuro reconhecimento, que vale o que vale, saliente-se aqui e agora a excelente prestação dos actores, sobretudo de Renate Reinsve e Anders Danielsen Lie, assim como a adequada estrutura ficcional de uma proposta narrativa que abre as portas a mil leituras e percorre muitas e diversificadas facetas da vida de uma mulher, como se fosse o diário de uma personagem chamada Julie, face a uma sociedade satisfeita consigo própria. Uma mulher em busca da sua identidade na relação fragmentada não só com outros, mas sobretudo o outro, com quem partilha o seu dia-a-dia. Uma mulher, assombrada pelos fantasmas do passado que se escondem nas rotinas quotidianas de um país do Norte da Europa, onde o usufruto do sucesso, mais material do que espiritual, se faz a partir do simples bem-estar económico, social e cultural. Mas as coisas, como o filme nos dá a ver, não possuem um só rosto e são muito mais complexas.

CONTRA: Não há filmes perfeitos para estrear semana após semana, mas o que este tem de bom faz esquecer pequenos pormenores, nomeadamente um ou outro ruído na exposição do comportamento de Julie, que finalmente não perturba a visão geral de um filme intitulado, com alguma ironia e ambiguidade, A PIOR PESSOA DO MUNDO.

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