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Nightmare Alley – Beco das Almas Perdidas, em análise

A nova grande obra de Guillermo del Toro chega finalmente aos cinemas nacionais, e já começa a dar que falar. Descobre o que a nossa equipa pensa de “Nightmare Alley – Beco das Almas Perdidas”.

OS MONSTROS ESTÃO ENTRE NÓS…!

Toni Collette
Toni Collette | ©20th Century Studios

Num período muito crítico da História do Século XX, o sonho americano deu lugar ao pesadelo da crise económica. No final do arco-íris já não havia um pote recheado de ouro, mas sim uma panela de metal rasca, cheia de furos, hipotecas, dívidas e contas por pagar. Depois de muito vasculhar, lá se conseguiam uns míseros cêntimos, que nem davam para pagar uma sopa rala e gordurosa num restaurante de quarta ou quinta categoria. Muitos americanos eram forçados a deambular, como vagabundos, pelas longas estradas do país. Fugiam da polícia para viajar, clandestinos, nos comboios de mercadorias. Procuravam um lugar onde encontrar um sustento passageiro, qualquer ocupação paga a preços desumanos mas que, mesmo assim, lhes desse uma ilusão de sobrevivência. Era a vida vivida um dia de cada vez. Mas não nos enganemos. Se uma parte significativa dos americanos estava posta de lado, empurrada para as margens da sociedade que antes prometia a abundância, outros havia que alimentavam o seu poder financeiro nos meandros do crime organizado, na especulação financeira, na exploração desenfreada de mão-de-obra barata. Diga-se, em abono da verdade, que na Europa as coisas não estavam melhores. Depois da devastação que foi a Guerra Civil de Espanha, na Alemanha a subida ao poder de Adolfo Hitler dava sinais claros de que o confronto entre civilização e barbárie estava prestes a rebentar, com a cumplicidade de regimes como os da Itália de Mussolini e do Japão dominado pelos militares com ambições imperialistas. Estavam reunidas as condições para o desastre civilizacional. Este é o contexto nacional e internacional que coincide com a narrativa de NIGHTMARE ALLEY (BECO DAS ALMAS PERDIDAS), 2021. Filme realizado por Guillermo Del Toro, a partir do romance homónimo de William Lindsay Gresham, publicado em 1946, obra que já dera origem a uma outra longa-metragem, dirigida por Edmund Goulding. Um verdadeiro clássico do film noir, estreado em 1947. Em ambos os filmes, a acção situa-se não muito longe da fronteira com o Canadá, mais precisamente no Midwest dos EUA. Estamos no início dos anos 40, era presidente dos EUA o democrata Franklin Roosevelt. Os ecos do crash bolsista de 1929 assim como as ondas de choque de uma das mais graves crises do capitalismo moderno, consubstanciadas nos anos da Grande Depressão, ainda se faziam sentir quando o protagonista de NIGHTMARE ALLEY, Stanton “Stan” Carlisle, interpretado com segurança por Bradley Cooper, chega a um “CARNIVAL”, designação dada no imaginário americano a uma mistura de circo e feira popular, onde proliferavam espectáculos de extrema bizarria relacionados com aspectos retorcidos e grotescos da natureza humana. Exposição de monstros ou pseudo-monstros, muitas vezes fabricados para provocar o espanto ou o puro horror em assembleias constituídas por pessoas com poucos recursos, ignorantes por crónicos défices de educação, uma massa humana demasiado vulnerável e crédula, ou simplesmente ingénua e alvo fácil da manipulação de vigaristas que lhes davam aquilo que no fundo elas procuravam, um escapismo do seu quotidiano sombrio e deprimente. Era uma forma acessível de alienação, a que se juntava uma outra, o alcoolismo.

Nightmare Alley
Cate Blanchett | ©20th Century Studios

Na actual versão de NIGHTMARE ALLEY, sabemos desde os primeiros minutos que o protagonista “Stan” cometeu um crime ou, pelo menos, procura resolver um assunto que nada indica ser algo de bom. Informação que irá condicionar o julgamento que se faz dos seus posteriores comportamentos, quer para o bem quer para o mal. Era algo que na versão clássica não existia. Nessa, a personagem interpretada por Tyrone Power já estava mais ou menos integrado na feira, e não havia nada de relevante ou perturbador que nos fizesse pensar que aquele homem carregava consigo um segredo comprometedor ou uma dose generosa de má consciência. Por isso mesmo, na actual narrativa iremos assistir ao gradual processo de integração de Stan nos labirintos e catacumbas obscuras da feira, através de uma série de encontros e desencontros com personagens pouco recomendáveis. Um dos primeiros, motivado pela necessidade de matar a fome e não dormir ao relento, será com um escroque, Clem Hoately, interpretado exemplarmente por Willem Dafoe, que aproveita a miséria da condição humana para obrigar os que se degradam pela bebida ou pela droga a desempenhar o papel de monstros, pessoas capazes de comer uma galinha viva diante de uma multidão composta por gente pouco exigente e mesmo por grunhos que, como se diz num dos diálogos do filme, vão ali ver o mais baixo a que um ser humano pode chegar, porque isso lhes dá uma sensação de superioridade. Mas o encontro mais significativo será com Zeena, interpretada por Toni Collette, uma artista da arte de “adivinhar”, figura principal de um número onde exibe os seus alegados poderes mentais. Na verdade, uma manipulação simples mas eficaz para embasbacar aqueles que no público escrevem em cartões súplicas, angústias e dúvidas existenciais, que de seguida Zeena “esclarece” através de um ardil bem urdido com a ajuda do marido, o alcoólico Pete, papel confiado, e bem, a David Strathairn. Este, por sua vez, saberemos ser autor de um código que permitia através da associação de certas palavras, pronunciadas de uma certa maneira e com uma determinada lógica, dar margem de manobra para um suposto médium decifrar perguntas escritas ou descrever certos objectos pessoais da audiência. Esse código, escrito num livro que Pete mostra num dos seus momentos de embriaguez, vai ser cobiçado por Stan que, directa ou indirectamente, será responsável pela morte do companheiro de Zeena. Entretanto, Stan iniciara uma relação com Zeena, que pouco mais fazia do que proteger o marido, com quem partilhara outrora um show de vaudeville, onde tinham usado o referido código com fama e proveito, pelo menos até Peter cair nos abismos do álcool. Só que Stan, após a morte de Pete, em vez de se aproximar de Zeena prefere ir embora com outra mulher, a jovem Molly, papel confiado a Rooney Mara. Os dois estão convencidos de que na posse do livro com o código delineado por Pete, vão poder finalmente alcançar um lugar ao Sol, longe da escura fealdade da feira. Deste modo, passam de “carnies”, gente da feira, a empresários por conta própria, organizando espectáculos de mentalismo nos sofisticados clubes nocturnos das grandes cidades, onde a partir do uso e abuso do código passam a enganar, noite após noite, não o povo anónimo mas sim os ricos e poderosos. Será numa dessas sessões que entra em cena Lillith, papel “diabolicamente” assumido por Cate Blanchett, uma das actrizes que melhor representa, na mais recente abordagem de NIGHTMARE ALLEY, a simbiose entre a moderna e antiga noção de mulher fatal, habitualmente associada ao FILM NOIR. Ela, no charme simultaneamente arrogante e discreto da sua posição profissional e social, certa noite procura desmascarar o embuste daquele espectáculo. Mas, não o conseguindo no acto, os seus caminhos irão cruzar-se com os de Stan, de um modo mais voluptuoso e subtil, recorrendo ao poder de sedução, aos favores de gente poderosa, mas igualmente aos meandros sinuosos da psiquiatria.

Nightmare Alley
Nightmare Alley | ©20th Century Studios

Permitam-me aqui, já que falo de volúpia, introduzir na crítica um aspecto que, na versão actual, me parece ser um dos aspectos mais frágeis do argumento e da representação, leia-se, da Direcção de Actores. Na verdade, o clássico dos anos 40 possuía uma qualidade e coerência no elenco feminino, que se sente menos na versão de 2021. Falta o que outrora se dizia sem dizer, muito por causa dos códigos de censura da época. Está de certo modo ausente a pulsão sexual emprestada pelas actrizes que então desempenharam o papel de Zeena (Joan Blondell), de Lillith (Helen Walker), e de Molly (Coleen Gray). Mesmo assim, não posso ignorar que há um esforço no sentido de criar um breve fulgor erótico, mais carnal do que sexual, quando Molly ainda se encontrava na feira no papel da ELECTRA GIRL. Essa euforia de sensualidade, mitigada noutras sequências do filme, explode quando ela se vê confrontada por um polícia que a repreende por atentado ao pudor, devido ao exíguo guarda-roupa que ostenta quando vibrantes raios eléctricos percorrem o seu corpo. Nessa altura Stan vem salvar a rapariga, com quem iniciara uma relação mais ou menos secreta, demonstrando na prática ao obtuso representante da lei que aquelas peças de roupa eram as que melhor protegiam Molly dos riscos da sua actuação. E aquilo que então veremos será uma magnífica e algo surrealista visão da jovem possuída por exuberantes raios de luz. Faz um pouco lembrar a sequência com a mulher autómato no METRÓPOLIS, de Fritz Lang. Só falta o olhar penetrante da dita. Nas duas versões de NIGHTMARE ALLEY, onde sequências similares se destacam, aposto que muito boa gente viu ali a representação de um orgasmo, o corpo invadido pelas descargas eléctricas, com a jovem desfalecida após os espasmos provocados pela corrente, ou seja, aquilo a que os franceses costumam chamar a pequena morte. Mas o clima de erotismo fica por aqui. Na verdade, Cate Blanchett, na frieza calculista com que representa a personagem de Lillith, usa o seu poder de sedução, pessoal e social, mas na sua expressão prática prevalece um desejo sexual reprimido. Sentimento apenas contrariado quando revela a Stan o corpo violado por uma horrível cicatriz que lhe marca o peito. Mas fá-lo para consolidar um exercício de manipulação do manipulador, que assim passa a olhar para Lillith como a vítima de uma monstruosidade a que já não pode ficar indiferente. Facto que será decisivo na estruturação do recontro final de Stan com um milionário pouco confiável, que o falso profeta da mente pensa estar em condições de controlar. Stan não se apercebe que criou um sistema povoado por monstros, um círculo íntimo moldado pela ambição desmedida que, conjugado com a mais básica ganância, fez dele um monstro vulnerável. Pior, passou a não distinguir as fronteiras entre a realidade e a fantasia, pensando que podia avançar para o inverosímil sem rede, como se as suas mentiras e encenações fossem infalíveis. Nem se deu conta que o feitiço podia virar-se contra o feiticeiro. Pensando que era o dono do jogo, deixou de controlar as jogadas, para se submeter impotente ao destino de uma qualquer carta de Tarot.

Na meteórica ascensão e queda de um homem com um passado, que os espectadores sabem não ser luminoso, ao longo dos 150 minutos de BECO DAS ALMAS PERDIDAS vamos desenhando o retrato mental do protagonista, assim como o rosto material e, por muitos anos escondido, do seu ser. No final, depois deste singular percurso fílmico, saberemos bem o que significa aquele desesperado grito de angústia. Porque ele sabe, como nós sabemos, que os monstros estão entre nós.

Willem Dafoe Óscares 2022
Willem Dafoe em “Nightmare Alley” | © NOS Audiovisuais

Finalmente, não posso deixar esta análise da moderna versão de um clássico do film noir e da literatura inscrita na série negra sem falar na Direcção de Fotografia, de Dan Laustsen, concebida com base numa paleta de cores que empresta aos ambientes do filme uma atmosfera estética de pesadelo, mundos fechados sobre si mesmos, mesmo quando saímos dos espaços concentracionários e degradados da feira. Indissociável da Fotografia, a Direcção Artística acentua na reconstituição de uma época os valores de produção dominados por uma definição classista dos décors, por um lado o básico e funcional dos deserdados e, por outro, o que resulta da ostentação plutocrática dos mais ricos, através da valorização das estruturas arquitectónicas e plásticas do estilo Art Deco.

Nightmare Alley - Beco das Almas Perdidas, em análise
Nightmare Alley

Movie title: Nightmare Alley

Date published: 25 de January de 2022

Director(s): Guillermo del Toro

Actor(s): Bradley Cooper, Toni Collette, David Strathairn, Rooney Mara, Richard Jenkins e Cate Blanchett.

Genre: Drama, Thriller, 2021, 150 min

  • João Garção Borges - 75
  • Manuel São Bento - 75
  • Maggie Silva - 72
  • Virgílio Jesus - 70
  • Rui Ribeiro - 70
  • Cláudio Alves - 65
71

Conclusão:

PRÓS: Nova abordagem cinematográfica, que não obscurece nem o clássico de Edmund Goulding nem a memória dos actores que encontramos no elenco da versão de 1947. Pelo contrário, recomendo vivamente que procurem uma cópia desse filme, porque a sua visão pode ser, antes ou depois, um belo exercício sobre o modo como a eficácia de um filme não se mede necessariamente pela maior ou menor importância dos valores de produção, incluindo os orçamentais. De igual modo, ficamos despertos para as potencialidades da obra literária original, de que uma parte substancial, e mais completa, surge agora na versão de Guillermo Del Toro.

Não será a melhor nem a pior obra do realizador. Possui, isso sim, algo que o coloca na primeira linha da produção cinematográfica destinada preferencialmente ao grande ecrã, ou seja, a dimensão imagética e narrativa que, sem precisar de ser super isto ou aquilo e muito menos sobrenatural, nos dá um leque de personagens, com ou sem máscaras, em confronto consigo mesmos e com a própria noção de Humanidade.

CONTRA: Há quem aponte a duração. Não concordo. Na verdade, há filmes que duram hora e meia e parecem infindáveis. Passo a sessão a olhar para o relógio e só não saio por disciplina de crítico. Há outros que duram horas e horas e quando acabam apetece vê-los de novo. Neste caso, não exageremos e digamos antes que o filme possui a duração que precisava para contar a história assombrada de um homem numa época particularmente difícil dos EUA e do mundo. Mais, sem querer fazer o filme dos outros, para mim esta nova versão podia, isso sim, desenvolver mais a relação de Stan com Zeena e de Stan com Molly. Faria assim mais sentido a composição gráfica do cartaz onde vemos aquele homem rodeado por aquelas mulheres e, naturalmente, a mulher fatal da relação Stan e Lillith. Repito aquilo que disse no presente artigo. De certo modo, falta o que não falhava na versão de 1947, o pulsar do desejo. O fogo que arde sem se ver.

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