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Gagarine, em análise

Fanny Liatard e Jérémy Trouilh trazem “Gagarine” até Portugal, um drama que promete cativar as audiências nacionais!

NA TERRA VISTA DA TERRA

GAGARINE
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Em 2020, a longa-metragem francesa GAGARINE participou na competição oficial do Festival de Cannes. Primeira obra da dupla Fanny Liatard e Jérémy Trouilh. Muitos poderão inicialmente supor que o filme está directamente relacionado com o cosmonauta Youri Alekseyevich Gagarin, primeiro homem a realizar uma órbita completa em volta da Terra, a 12 de Abril de 1961. Um acontecimento, entre outros de igual importância, que colocou a União Soviética na vanguarda da conquista do espaço e deu ao seu protagonista o estatuto de autêntica celebridade, absolutamente merecido, num mundo disponível para saudar os verdadeiros heróis da humanidade, os super-heróis de carne e osso que não eram invencíveis nem imortais. Na prática, em plena Guerra Fria o salto em frente que significava aquele feito dava a muitos cidadãos a esperança num futuro radioso, onde os valores do progresso associados aos valores da Liberdade, Igualdade e Fraternidade não fossem uma mera promessa, uma arma de manipulação política ou um redutor exercício de demagogia. Provavelmente por esta razão, no início dos anos 60 os mentores da construção de um vasto edifício com 370 apartamentos, destinado a habitação social nos arredores de Paris, mais precisamente em Ivry-Sur-Seine, deram a esse grande imóvel o nome GAGARINE. Este baptismo, proposto pelo então Partido Comunista Francês, pode parecer um pouco forçado e até algo deslocado da realidade francesa. Mas de certo modo acaba por fazer sentido se pensarmos que a identificação daquele projecto ao homem do momento – não apenas o herói soviético mas o símbolo maior de uma aventura de grande impacto e dimensão, que ultrapassava largamente as ideologias e as fronteiras da então URSS – significou para muitos homens, mulheres e suas famílias uma espécie de conquista, não do espaço sideral mas de um espaço existencial capaz de materializar os sonhos que mantinham como cidadãos. No caso a que o filme se refere, muitos foram os proletários e pequeno-burgueses, uma boa parte emigrantes, que para ali convergiram na esperança de encontrar na escala urbana do projecto GAGARINE condições de habitação mais adequadas e dignas e um maior conforto para as actividades do seu quotidiano.

GAGARINE
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Diga-se que os autores do filme não ignoraram nem quiseram ocultar o sentimento de entusiasmo que então se viveu. Bem pelo contrário. Logo nos primeiros minutos de GAGARINE dão-nos a ver uma cuidada montagem de imagens de arquivo com a visita do verdadeiro Yuri Gagarin ao referido complexo habitacional. Neste breve documentário que precede o genérico inicial vemos o piloto rodeado de centenas de pessoas, rostos radiantes, aplaudindo com determinação e fulgor a sua presença. São imagens fortes, mas elas não estão lá para nos dar conta apenas do passado histórico e dos seus períodos de glória, da História com H grande. Elas estão lá para começar a contar uma outra história, desta vez com h pequeno, ou seja, a vida atribulada e igual a muitas outras de Youri, papel confiado a Alséni Bathily. Ele é um rapaz de origem africana que, sessenta anos depois, procura a diferença ao remar contra a maré da degradação material não apenas de GAGARINE mas dos bairros periféricos de uma grande cidade como Paris, os chamados “banlieues”, confrontando a sua visão particular sobre aquele edifício, que sabemos estar condenado a desaparecer, com a indiferença dos outros, jovens e velhos, que por ali ainda andam, muitas vezes preferindo conviver com a marginalidade, e mesmo a pura delinquência, a empreender qualquer esforço no sentido de salvar o imóvel da anunciada demolição. Na verdade, alguns não pensam sequer verter uma gota de suor nem uma lágrima de compaixão porque sabem, vagamente mas sabem, que para pior não os irão deslocar. Iludidos ou não, pensam que GAGARINE, o prédio que na prática já não sentem ser o seu espaço vital, pertence ao passado que alguns nunca presenciaram e assim querem um novo futuro, sem nostalgias, longe da miséria e das dificuldades do presente. Nos dias de hoje, perante a falta de alternativas melhores, alimentam-se de ilusões e falsas promessas. Neste contexto, a primeira metade do filme decorre como se os argumentistas nos quisessem enfiar pelos olhos dentro os possíveis “argumentos” a favor de Youri, as matérias necessárias e suficientes para acreditarmos nas razões que levam alguém como ele a querer permanecer num local onde são visíveis os sinais de decadência, que procura desesperadamente e com sacrifício pessoal contrariar, realizando aqui e além uma ou outra intervenção. Renova a iluminação dos espaços públicos, pinta as paredes conspurcadas por grafitis, numa palavra, procura dar um ar mais limpo e saudável a corredores e pátios que ao longo dos anos foram contaminados por crónicas falhas nos cuidados de manutenção. Pouco a pouco, iremos seguindo as suas deambulações, acompanhado por um amigo que mantém com ele uma certa solidariedade, a que se junta uma rapariga de origem cigana, Diana, papel exemplarmente desempenhado por Lyna Khoudri. Esta adolescente de espírito bem adulto, por viver num acampamento próximo com a família, surge aqui como a representante do outro mundo marginal, o que não possui ligação directa aos marginalizados que habitam ou habitavam o imóvel GAGARINE, mas sofrem de algumas das mesmas carências. Na sua relação com Youri, a jovem vai revelar-lhe os mecanismos mais ou menos secretos que permitem a ambos estabelecer plataformas comuns de comunicação. Para os devidos efeitos, usam sinais luminosos e o código Morse para enviar mensagens um ao outro – ele no prédio e no apartamento de onde não quer sair, ela no alto de um guindaste – dando assim início a uma gradual aproximação sentimental, que porém não chega a ser nem uma inflamada paixão nem um simples devaneio sexual. Na verdade, Youri passa os seus dias praticamente sozinho, a sonhar com viagens pelo espaço, a observar as estrelas e os planetas. Percebemos igualmente que ele não possui qualquer obsessão inexplicável por um local onde está cada vez mais isolado e onde até os operários encarregados da demolição já se instalaram. Na realidade, Youri não sabe para onde ir. Parece ultrapassar mas não disfarçar a mágoa que sente perante a ausência da mãe. Por isso as quatro paredes da sua casa passaram a ser uma espécie de refúgio onde materializa os sonhos mais extravagantes, um apertado espaço que a certa altura vai ampliar invadindo pela força outros apartamentos de modo a construir o simulacro de um módulo espacial. Projecto feito de muitas peças soltas que ele vai unir no sentido de criar uma espécie de segundo ventre materno, um santuário onde se sinta protegido. Para construir o improvável módulo, usa informação recolhida online através das palavras de verdadeiros astronautas e, com uma habilidade manual fora de série, diga-se, pouco credível do ponto de vista narrativo, Youri recolhe uma série de objectos abandonados e consegue com eles gerar um sistema próprio, um micro-cosmos digno da ficção científica de série B, onde não falta sequer a possibilidade de cultivar plantas para o seu sustento. Infelizmente, numa altura em que visionamos o filme com alguma generosidade e estamos naquela fase de receptividade face a estas fantasias de Youri, o argumento resvala para um buraco negro que absorve a energia do protagonista e do espectador, impedindo aquilo que podia ser, mas acaba por não ser por manifesta falta de coerência ficcional, a valorização do lado maravilhoso da narrativa, aquilo que só a linguagem cinematográfica nos poderia dar, ou seja, a radical mudança de registo que nos levasse do realismo social para a esfera do simbólico e onírico. Há momentos em que essa hipótese ganha um pouco de consistência, há mesmo uma ou outra sequência concebida com grande eficácia imagética, mas logo a seguir, polvilhados no processo narrativo, surgem e prevalecem erros que nos impedem de aderir ao fluir da acção e, sobretudo, de aceitar como boas as situações retratadas. Por exemplo, muito custa acreditar que aquele rapaz consiga permanecer escondido num apartamento ampliado a camartelo, destruindo paredes para alcançar a suposta dimensão de um módulo espacial, quando os seus amigos e menos amigos entram e saem do espaço assim aberto com a maior das facilidades. Isto numa altura em que as entradas e saídas do imóvel estavam a ser fechadas e havia operários a circular pelos corredores. Não se consegue perceber qual a necessidade de introduzir mais uma personagem, um rapaz de comportamento irrequieto e pouco recomendável, que a certa altura será perseguido pela segurança instalada no prédio até ao interior do espaço de Youri sem que nada se passe a seguir, mesmo depois de constatarem a existência de alguma coisa bizarra no interior do prédio, o espaço-casa-módulo de Youri. Como se disse, o guião resvala, o argumento derrapa e, não obstante, estavam lá desde o início os elementos mais do que suficientes para definir quando se quisesse uma segura variação dos principais conflitos dramáticos e, sim, os aspectos mais subjectivos ou até mesmo abstractos da narrativa. Por um lado, a realidade bruta da contagem decrescente da demolição de GAGARINE, que o filme não mostra e bem, mas que sentimos como uma permanente ameaça, destruição esta que realmente aconteceu pouco depois da rodagem, em 2019. Por outro, a viagem iniciática e algo desesperada de Youri pelos meandros de uma noite em que o seu corpo supera a gravidade da TERRA, julgando vaguear no espaço onde a fantasia fílmica o podia levar a um lugar distante e irreal, uma UTOPIA que bem podia ser a sua TERRA DO NUNCA, onde numa imaginária órbita celeste pudesse vislumbrar a TERRA… a sua TERRA vista da TERRA.

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Gagarine, em análise
GAGARINE

Movie title: Gagarine

Date published: 31 de January de 2022

Director(s): Fanny Liatard e Jérémy Trouilh

Actor(s): Alseni Bathily, Lyna Khoudri, Jamil McCraven

Genre: Drama, 2020, 98 min

  • João Garção Borges - 55
55

Conclusão:

PRÓS: Um filme que procura evitar a visão redutora e demagógica da vida nos bairros marginalizados dos arredores de Paris. Uma narrativa que confronta a memória histórica dos anos 60 e do clima de esperança depositado num futuro radioso para a Humanidade, com a dura realidade do quotidiano dos que sobreviveram, ou não, ao degradar das condições sociais e económicas das primeiras décadas do século XXI.

CONTRA: Quando era preciso mais segurança e credibilidade narrativa na estruturação do argumento, o filme perde o rumo e alguma força inicial para entrar numa deriva fantasista e simbólica, onde o sonho do protagonista não encontra correspondência com o projecto primordial de intervenção na salvaguarda de um imóvel que sabemos condenado nem com a realidade social e colectiva dos seus cada vez mais dispersos e desmobilizados inquilinos.

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