Eagles of the Republic e Alpha: Duas Visões do Poder e do Trauma | Diário do Festival de Cannes 2025 (Dia 10)
O Festival de Cannes 2025 entra na sua recta final e decisiva com dois filmes que, apesar de muito distintos na forma e tom, dialogam entre si nas suas inquietações centrais: o poder, o corpo e a memória coletiva. Eagles of the Republic, de Tarik Saleh, e Alpha, de Julia Ducournau, são obras intensas e perturbadoras que, à sua maneira, enfrentam os espectros do autoritarismo e da transmissão intergeracional do trauma.
“Alpha”: Julia Ducournau Enfrenta o Medo com Corpo e Emoção
Três anos após conquistar a Palma de Ouro com o polémico “Titane”, Julia Ducournau regressa à Competição com um filme que não se limita a explorar novas tonalidades — arrisca tudo numa direção mais íntima, melancólica e profundamente pessoal. “Alpha” é um drama adolescente sobre corpo, trauma e a doença, ambientado nos anos 80 e 90, em plena epidemia de uma doença fictícia que ecoa claramente a crise da SIDA.
Tudo começa com uma tatuagem
A jovem protagonista, Alpha (Mélissa Boros), tem 13 anos e vive com a mãe solteira e médica num hospital de doentes terminais, interpretada por Golshifteh Farahani. Um simples gesto — uma estranha tatuagem — desencadeia uma série de revelações familiares e crises emocionais, sobretudo quando amabas se confronta com a condição do tio (e irmão) Amin, maravilhosamente interpretado por Tahar Rahim, que perdeu 20 quilos para o papel. Este é talvez, o filme menos gráfico de Ducournau em termos de body horror, mas talvez o mais devastador, do ponto de vista psicológico. A transformação do corpo continua a ser central na sua obra, mas agora vista como um espelho de tensões emocionais e geracionais. Mélissa Boros, (“Le Silence de Sibel”) na personagem principal, afirma-se mais uma vez ser uma revelação no domínio da interpretação: frágil e feroz, inocente e desafiante.
“Alpha” esteve quase fora da selecção
A realizadora revelou que o comité do festival hesitou em aceitar “Alpha” na Competição, temendo uma reação polarizada do público e da crítica. E, de facto, o filme tem dividido os comentários — há quem o veja como uma obra-prima silenciosa e há quem o ache demasiado hermético. Poré, ninguém sai indiferente a este filme estranho e perturbador. Ducournau não procura mesmo o consenso: ela continua a escrever com a carne. “Alpha é um filme sobre a transmissão do medo, do silêncio, da dor. Sobre o que não foi dito — e que de certo modo continua a moldará os que vieram depois”, comentou Julia Ducournau à Vanity Fair.
“Eagles of the Republic”: Um Noir Político nos Bastidores do Cinema Egípcio
Além de “Alpha” de Julia Docournou, foi a vez do realizador sueco de origens egípcias Tarik Saleh regressar a Cannes com o capítulo final da sua ‘Trilogia do Cairo’, iniciada com “The Nile Hilton Incident” (2017) e depois “A Conspiração do Cairo” (2022). No entanto, em “Eagles of the Republic”, o realizador eleva a sua fasquia crítica: não só enfrenta o regime do presidente Al-Sissi de forma alegórica como investiga os próprios mecanismos da propaganda através da sétima arte de produção egípcia.
Uma estrela de cinema ‘metida em trabalhos’
A narrativa segue George Fahmy (interpretado por Fares Fares, um colaborador habitual do realizador), ‘a maior estrela de cinema do Egito’, que é subitamente convocado para interpretar o próprio presidente num filme encomendado pelas forças do regime. Ao aceitar o papel, Fahmy vai entrar num jogo perigoso de sedução e submissão — com uma mulher proibida e com o próprio sistema que o cooptou. Visualmente austero e narrativamente denso, o filme evoca o melhor do noir moderno, com ecos de Alan J. Pakula e Costa-Gavras. Fares Fares, como já se disse, uma presença constante no universo de Saleh, oferece aqui uma das suas performances mais contidas e complexas, como um homem dividido entre o ego artístico e o desejo de sobrevivência num estado opressivo.
VÊ TRAILER DE “EAGLES OF THE REPUBLIC”
Um ensaio sobre o autoritarismo
Com uma fotografia elegante de Pierre Aïm e música assinada pelo ‘mestre’ Alexandre Desplat, “Eagles of the Republic” é também uma superprodução pan-europeia em língua árabe, filmada em Istambul e pós-produzida na Suécia. A internacionalização da produção reforça a universalidade da crítica: o autoritarismo pode ser egípcio, mas a sua sombra pode estender-se a todos os regimes contemporâneos e ocidentais: “Idealizamos o homem forte porque queremos acreditar que ele nos vai salvar — mesmo quando sabemos que o desfecho é inevitável.”, disse Tarik Saleh, em entrevista conclusiva à Hollywood Reporter.
O cinema como arma e confissão
Ao ver “Eagles of the Republic” e “Alpha” no mesmo dia, torna-se evidente que Cannes continua a ser o espaço por excelência onde o cinema se confronta com as feridas do mundo — sejam elas políticas ou íntimas, históricas ou corporais. Saleh investiga o poder que molda narrativas para perpetuar a autoridade. Ducournau mostra-nos o corpo que carrega, sem escolha, os traumas que herdou. Ambos recusam o conforto da neutralidade. Os dois são filmes de resistência — um pela denúncia, outro pela exposição emocional. Em Cannes, entre tapetes vermelhos e debates acesos, estas obras lembram-nos que o cinema ainda pode — e deve — ser uma forma de insurreição.
JVM