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A Conspiração do Cairo, a Crítica

O cineasta Tarik Saleh introduziu as audiências nacionais à sua obra “A Conspiração do Cairo”, protagonizada por Tawfeek Barhom e Fares Fares.

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Em 972, o Califado dos Fatimidas fundou Al-Azhar com o objectivo desta instituição vir a ser o centro da educação islâmica. O Grande Imã é a autoridade máxima do Islão Sunita. Ao longo dos séculos, os governantes do Egipto procuraram controlar Al-Azhar. Até agora, falharam essa intenção”. São estas as palavras que servem de introdução e nos esclarecem logo de início sobre alguns dos pontos fundamentais do que iremos ver de seguida na co-produção europeia WALAD MIN AL-JANNA (A CONSPIRAÇÃO DO CAIRO), 2022, realizado pelo sueco de origem egípcia Tarik Saleh. Para melhor percebermos o contexto em que decorre a acção será necessário dizer que Al-Azhar foi desde sempre um dos pilares fulcrais dos estudos islâmicos. Todavia, a partir de 1961 e durante a Presidência de Gamal Abdel Nasser, passou a contar com o estatuto de universidade pública, passando igualmente a incluir uma série de faculdades, digamos, seculares, como as de gestão empresarial, economia, ciências, farmácia, medicina, engenharia e agricultura.




O ISLÃO, O PODER, A VERDADE E A MENTIRA

A Conspiração do Cairo
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Na prática, frequentar esta antiga madraça (escola muçulmana), agora universidade no sentido mais amplo do conceito académico, constituiu e continua a ser a porta de entrada para um mundo restrito a que só uma elite consegue aceder. Muitas vezes por convite sob a forma de bolsa de estudo. Será isso mesmo que sucede ao rapaz protagonista, Adam (um papel muito bem defendido por Tawfeek Barhom), que vemos nas primeiras sequências do filme ao lado do pai e na faina do mar como simples pescador. Trata-se de uma família de poucos recursos financeiros, em que se nota a ausência da mãe e em que o pai procura educar os seus filhos segundo um modelo de disciplina que aos nossos olhos pode parecer retrógrado mas que nas circunstâncias sociais e culturais em que se encontram inseridos, El Manzala (o nome deriva do lago com o mesmo nome situado no noroeste do Egipto), passa por ser relativamente normal.

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Pouco depois e com o apoio do pai, que vê na hipótese de o filho entrar na prestigiada universidade um desígnio de Deus que nem ele pode contrariar, apesar de ser claro que a ausência do jovem será sentida nas rotinas da labuta diária, veremos Adam a chegar ao Cairo e a ser recebido como mais um aluno a quem foi dada uma oportunidade única que de modo nenhum deve desperdiçar. Mas as coisas não são sempre como as imaginamos, nem os alegados desígnios divinos percorrem caminhos lineares. Antes pelo contrário, muitos são misteriosos e o mais das vezes sinuosos. E mistérios não faltarão para inquietar o rapaz que afinal só queria viver a sua vida e aprofundar os ensinamentos que a sua fé lhe exigia. Plano a plano, sequência a sequência, seremos então introduzidos numa espécie de simbiose entre espaços amplos e labirintos de portas fechadas que se abrem para círculos fechados mais ou menos pessoais onde subsiste uma certa intimidade feita de muitas cumplicidades. Por outro lado, outros espaços distinguem-se pelo facto de ocuparem uma absoluta centralidade na vida escolar.




Estão habitualmente banhados pela luz natural. Mesmo de noite não se perfilam como sombrios, apesar de nos corredores laterais ou do alto de um minarete podermos ser sobressaltados por algo de inesperado, como o assassinato de um informador ao serviço da Segurança do Estado. E aqui entra de forma decisiva na acção, consolidando o seu posicionamento anterior já reconhecido, o outro semi-protagonista de A CONSPIRAÇÃO DO CAIRO, um coronel dos serviços de segurança que dá pelo nome de Ibrahim (figura peculiar interpretada por Fares Fares). Será ele quem vai depositar nas mãos de Adam a brutal responsabilidade de ser o novo informador, o espião que devia reportar sobre as actividades que de algum modo pudessem colocar em risco o desejo do presidente egípcio (isso fica muito claro nos momentos em que assistimos ao planeamento da apelidada conspiração), ou seja, fazer eleger um novo imã que correspondesse ao perfil de um islamita próximo do poder político, necessidade imperiosa após a morte súbita do anterior líder espiritual.

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A Conspiração do Cairo
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Havia um candidato na calha, se a linha sucessória fosse respeitada, mas esse não era o homem desejado. Era, sim, um professor respeitado, um religioso de convicções seguras, capaz até de citar, como ele dirá, o filósofo judeu Karl Marx a propósito da questão da verdade: “Fechem os olhos para que possam ver a verdade. A necessidade é cega até se tornar consciente. E a liberdade é a consciência da necessidade”. E acrescenta: “Ele também disse que a religião é a prova da impotência mental do homem perante aquilo que não consegue compreender”. Para evitar a sua eleição, a Segurança do Estado prende-o e, acto contínuo, com o intuito de expor num eventual julgamento a verdade dos factos que ele não ignora, assume que foi ele quem matou o informador. Um crime que na verdade o espectador não sabe ao certo por quem foi cometido, não obstante haver fortes razões para desconfiar da identidade institucional dos seus autores.




Na realização e no processo de planificação de cada sequência, Tarik Saleh consegue gerir as diversas voltas e reviravoltas da narrativa sem nos fazer perder pitada do suspense que se vive nos dias e noites da universidade, nem falha na cuidada abordagem do stress a que o jovem Adam se vê submetido. Em cada surtida fora de portas e em cada incursão pela baixa do Cairo e pelas suas ruas repletas de carros, ladeadas por um leque multifacetado de lojas, e por centenas, mesmo milhares de habitantes de uma metrópole que fervilha de vida e movimento a qualquer hora, acompanhamos o acossado Adam e quase sempre ficamos do seu lado por ser ele um dos poucos que, apesar dos receios que o levam a não assumir de forma intensa uma posição pró ou contra o poder que o manipula, permanece mesmo assim um ser apostado em agir de forma correcta e leal, pelo menos em relação aos seus princípios cívicos.

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Não deixa de ser ingénua a sua crença numa pureza que vive paredes meias com a degradação moral, não deixa de ser frágil a percepção que demonstra, sobretudo visível nas contracções do seu rosto, face a um conjunto de gritantes contradições que contaminam a realidade circundante, tanto as que surgem no interior como no exterior do “campus” de Al-Azhar. Mas há nele uma sinceridade e uma ausência de hipocrisia manhosa que no limite o colocam em perigo, mais uma vez, dentro e fora da que supostamente deveria ser a sua zona inicial de conforto. O dilema entre a verdade e a mentira dilacera-o como setas apontadas ao seu corpo, que por uma unha negra poderia vir a ser o de um mártir.

A Conspiração do Cairo
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Neste Verão quente, A CONSPIRAÇÃO DO CAIRO estreia no grande ecrã contrariando algumas rotinas da programação estival. Desde já saudemos a possibilidade de conhecer este belo exercício cinematográfico, muito bem produzido, que mergulha nas águas revoltas de uma matéria escaldante deste nosso mundo, a corrupção material e espiritual. Um filme para quem quiser perceber melhor algumas das boas e más razões por que se deram os acontecimentos, que se calhar os mais distraídos já nem recordam, ocorridos na Praça Tahrir em pleno centro do Cairo. Tudo começou a 25 de Janeiro de 2011 e durante semanas uma onda de protestos varreu o Egipto. Foi um momento de grande significado histórico que ficou conhecido pela romântica designação de Revolução Egípcia de 2011. Seja como for, este filme vem recordar que há ainda um longo caminho a percorrer.

A Conspiração do Cairo, a Crítica
A Conspiração do Cairo

Movie title: Walad min al-Janna

Director(s): Tarik Saleh

Actor(s): Tawfeek Barhom, Fares Fares, Mehdi Dehbi, Mohammad Bakri

Genre: Drama, 2022, 126min

  • João Garção Borges - 80
80

Conclusão:

PRÓS: Em 2022, recebeu no Festival de Cannes o Prémio para Melhor Argumento.

Muito boa prestação da Direcção Artística, que reconstituiu os ambientes egípcios da universidade de Al-Azhar maioritariamente na Mesquita de Suleimaniye, situada numa das colinas de Istambul, Turquia.

CONTRA: Nada.

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