Cavaleiro de Copas, em análise

Terrence Malick invade-nos a alma com uma cascata de memórias nirvânicas, que sussuram ao ouvido o pânico existencial de uma Los Angeles fútil e sórdida. “Cavaleiro de Copas” é uma montanha russa de emoções à flor da pele, um colóquio a sós com o eu interior em busca da “pérola” das nossas vidas.

Cavaleiro de Copas é, provavelmente, o retrato mais audaz e fiel que se esconde nos sorrisos e gargalhadas dos grandes banquetes e festarolas da nata de Hollywood. Talvez, para evitar o sarcasmo de tal faceta plastificada – mais ainda com esta película de chapada de luva branca -, é que Terrence Malick não é tido nem achado nos eventos da indústria cinematográfica nem nas premieres dos seus próprios filmes. Malick é uma espécie de lobo solitário que despreza as luzes da ribalta, e só as tolera para divulgar as suas obras de arte. Os seus filmes são excêntricos e peculiares, como se ele olhasse para a tela como um mudo olha, dando uma primazia amplificada à imagética e sonoplastia em detrimento das palavras. Cavaleiro de Copas bem poderá ser a sua obra mais intimista até à data, a sua confissão pública a todos os lambe botas de agentes de estrelas em ascensão ou em decadência, que inspiram o ecstasy diário da felicidade falaciosa nos bastidores da sua profissão.

“Cavaleiro de Copas é, provavelmente, o retrato mais audaz e fiel que se esconde nos sorrisos e gargalhadas dos grandes banquetes e festarolas da nata de Hollywood.”

Mas porquê Cavaleiro de Copas? A resposta é sussurrada como a sonata de um adágio familiar: “é sobre um cavaleiro – um príncipe – enviado para bem longe até ao Egipto a fim de encontrar a pérola das profundezas do oceano”; enquanto Rick (Bale) deixa-se cavalgar por dois pares de pernas compridas no terraço milionário de um loft com piscina. Mas a voz de boa noite de Dennehy (Pai de Rick) não desiste da liturgia moralista: “Mas quando o príncipe chegou ao destino, serviram-lhe uma taça que lhe limpou a memória. Ele esqueceu-se que era o filho do Rei e caiu num sono profundo.” Mas Malick quis que este Rick – este trintão em busca do seu algo significante – fosse acordado não pela sua própria natureza, mas por aquela que nos consagra como seres vivos, aquela que nos dá um abanão sem aviso e faz estremecer a pedra que pisamos, o mármore que sujamos de forma tão descuidada e negligente. Possivelmente, Rick terá sido o alter-ego hedonista de Malick – será certamente em termos cinematográficos -, mas até o poderá ter sido em algum grau na vida real; o zombie  com esta experiência extracorpórea, que deambula como uma coqueluche pelo recreio da alta sociedade americana ao ritmo da “Vida Louca” de um outro Rick com diminutivo para os amigos.

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O álbum existencial de colagens digitais psicadélicas discorre em paridade com a sensatez do mundo físico despido de agressões humanas, aonde emerge o trilho do peregrino que se quer despojar de toda a sua angústia interior. O documentário vagabundo da sua antivida prossegue armadilhado pelos arcanos do Tarot, como a torre, o eremita, o enforcado, que são transversais a todas as pessoas com quem ele priva ou privou; a “todos os morangos e framboesas que ele provou e fartou” como atira António Banderas numa dessas parties de relva e poncho da moda. A vida parece tão “Yupi” ao volante de um Cadillac descapotável emparelhado com a rebeldia indomável de Della (Imogen Poots), mas numa súbita rajada de vento torna-se tão sofrível nos braços de uma esposa que já só é médica (Cate Blanchet), ou tão serena e descontraída como o olhar meigo e enigmático de Helen (Freida Pinto), tão redentora como o sorriso de uma amante ofendida (Natalie Portman) – que bem poderia ser o amor da sua vida. Mas esta é só a longa lista de “fruta” espremida antes da hipnotização consumista, sem contar com a dádiva dantesca do pugilismo familiar de um irmão, Barry (Wes Bentley) revoltado com o mundo e um pai arruinado pelo seu fracasso parental. É este o atropelo emocional que Malick poetiza no ecrã num tom quase burlesco, não por consentir alguma nota humorística, mas no sentido mais chocante.

“O álbum existencial de colagens digitais psicadélicas discorre em paridade com a sensatez do mundo físico despido de agressões humanas, aonde emerge o trilho do peregrino que se quer despojar da sua angústia interior.”

Mas Rick vai desbravando caminho pelos estilhaços da guerra consigo mesmo, divagando com a sua consciência cognoscente empoleirada no ombro como o compincha de todas as aventuras – que Emmanuel Lubezki acentua com uma visão caleidoscópica daquela empreitada grandiosa de redenção da sua alma. Ele atira-se a todas as montras berrantes que estoiram de sugestão e sabor, com aquela cara de “chivo” como se a alcunha de Lubezki em criança até servisse para invocar esta imagem de um rebento faminto, que se acha perdido e deslumbrado nesta metrópole metálica de anjos excomungados. Por vezes, a sua fotografia carregada de exuberância empurra Rick para o cadafalso do seu lado mais naife, convidando-o a largar a coleira racional, seguindo o instinto do animal que se atira ao charco em busca do osso arremessado por um qualquer idiota que só pensa em não pensar. É por isso que as Palmer (Karen) de qualquer boate se deixam encantar por um Rick que as entretenha com “uma mente de cinema”, como se a estupidez humana fosse o novo “happy”, tão natural como o naturalismo arrebatador que Lubezki vai jorrando em panorâmicas pacíficas, que se fartaram dos neons encadeantes, dos risos enjoativos, das fachadas cor de rosa esparramadas no Facebook.

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São estes os impulsos mais primitivos do ser humano que Malick quis captar e capturar na sua essência com uma textura experimental, ao ponto dos atores aparecerem no “set” para gravar às cegas, sem a preparação meticulosa de vestirem a pele das suas personagens icónicas, apenas com fragmentos informativos de uma representação que não poderia ser mais crua, genuína e sincera. Bale descreve esta experiência de improviso como “acidentes felizes” – que Portman assimila como “erros oportunistas” de uma abordagem não convencional das tradicionais práticas de filmagem, libertando os intervenientes da metódica restritiva dos guiões mainstream. Mas é assim que Malick gosta de trabalhar: no banco traseiro de uma Pickup a fazer uma missa de “voiceovers” com os seus protagonistas como se estivessem num casting para um “blind date”.

“São estes os impulsos mais primitivos do ser humano que Malick quis captar e capturar na sua essência com uma textura experimental, ao ponto dos atores aparecerem no “set” para gravar às cegas, sem aquela preparação meticulosa de vestirem a pele das suas personagens icónicas, apenas com fragmentos informativos de uma representação que não poderia ser mais crua, genuína e sincera.”

“Cavaleiro de Copas” é um sonho de criança para aqueles que não conseguiram deixar de o ser na sua idade adulta, e o realizador não esconde o filme dessa nostalgia inocente de apreensão e aceitação do mundo físico como um parque de diversões infindáveis, só para descobrirmos que, afinal, o “rebuçado” tem um prazo de validade mais curto e uma repercussão emocional mais nefasta, do que quando era um simples “rebuçado” destinado apenas a uma simples criança. O cancioneiro cinematográfico brinca com a fototeca dos primórdios da vida, e é nesse parâmetro que reside a sua maior contradição – e que parece óbvio para Malick -, de que é possível colocar um preço nos bens materiais, mas é impossível colocar uma etiqueta com um número nos afetos. Mas Malick, talvez, se tenha deixado maniatar por esse passado feliz, ao classificar o materialismo como adornos de “biberão e chupeta”, reduzindo o intelecto a quase ervilha, mas uma ervilha com salvação, ao que parece. O Rick em transe acorda para o que mais importa na vida: o amor perdido daqueles de quem se deixou perder, e Malick tenta encher-nos esse “Cup” vazio de substância espiritual com uma eficácia eclética e um snobismo satírico que inebria os sentidos opulentamente. Não é para todos, é para os que necessitam de ser salvos de si mesmos, não pelo senso comum, mas por essa via em direção ao bom senso.

Consulta : Guia das Estreias de Cinema | Março 2016

O MELHOR – O lado mais cru e gestual da representação quase muda de Rick (Bale), que enaltece a máxima de que um olhar vale mais que mil palavras.

O PIOR – O estilo repentista e impressionista da cinematografia de Malick podem não ser do agrado generalizado, já que quebra com os cânones estruturais do cinema atual.


Título Original: Knight Of Cups
Realizador:  Terrence Malick
Elenco: Christian Bale, Cate Blanchet, Brian Dennehy
NOS | Drama | 2015 | 118 min

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