Transe, em análise

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  • Título Original: Trance
  • Realizador:  Danny Boyle
  • Elenco: James McAvoy, Rosario Dawson, Vincent Cassel
  • Big Picture | 2013 | Thriller, Crime | 101 min

Classificação:

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Depois de uma semana de trabalho incessante, o film noir resolveu investir na loucura por uma noite: ingeriu uma generosa quantidade de LSD e entrou confiante numa turbulenta rave que tinha lugar ali ao lado.

Expondo-se a horas de uma frenética harmonização entre música eletrónica, luzes néon e dança desvairada, eis que veio ao mundo “Transe”.

Criador compulsivo de cinema inesperado, Danny Boyle retira um prazer imenso da navegação pelos vários géneros e linguagens cinematográficas, oferecendo-nos uma coleção eclética de títulos que vão desde o frenético “Trainspotting”, ao aterrorizador “28 Dias Depois” e da ficção científica de “Sunshine – Missão Solar”, passando pelo bollywodesco “Quem Quer ser Bilionário?” até à saga do antebraço decepado em “127 Horas”. Na verdade, é com segurança que dizemos que nunca fez um mau filme – ou um mau espetáculo Olímpico, já que falamos nisso.

Desta feita, o ataque é posicionado, aparentemente, ao heist movie.

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James McAvoy interpreta Simon que nos introduz ao mundo dos leilões de arte através de um discurso em voice-over sobre as características específicas do seu trabalho, e como este foi afetado pela onda de assaltos que se foi desenvolvendo ao longo dos anos. Rapidamente percebemos que o primeiro truque foi acionado, e Simon não é apenas um leiloeiro de arte, mas parte integrante de um gang com o plano de roubar um valioso quadro de Goya.

Um imprevisto durante o assalto resulta numa forte agressão na cabeça que o deixa inconsciente, e é esta pancada, muito como o soar de um gongo, que altera daí para a frente todo o curso da ação. Agora, Simon não consegue lembrar-se onde escondeu o quadro, nem mesmo depois de uma violenta sessão de ‘manicure tortuosa’ oferecida pelos obedientes serventes de Franck, o líder do grupo.

Desesperado por reaver o quadro, o líder propõe a Simon que escolha uma hipnoterapeuta para o ajudar a recordar-se da localização exata do quadro – introduz-se Elizabeth Lamb, uma presença enigmática que rapidamente descobre os verdadeiros intentos do novo doente e força Franck a aceitá-la entre o grupo para ajudar Simon a recuperar a memória.

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E aqui se inicia a descida gradual até ao delírio, sobre o qual nada mais revelaremos, não só porque Danny Boyle pediu encarecidamente aos críticos de cinema para não estragarem os twists de “Transe”, mas especialmente porque era impossível fazê-lo sem autoinduzir uma hemorragia cerebral semelhante àquela que seria necessária para explicar, por hipótese, “Mulholland Drive” de David Lynch ou, ainda mais, a série “Perdidos”.

A ideia de partida do argumento é simples, mas esta é depois projetada pelo prisma do inconsciente, desaguando depois sob diversas formas, na vida, emoção, personalidade e memória de Simon.

Posto isto, e sem ser capaz de assumir um ou outro extremo da corda bamba, “Transe” fica a meio caminho de ser uma obra de arte absoluta, mas também de ser um desastre completo – se por um lado somos assaltados por uma onda de pequenos orgasmos sensoriais, também é verdade que o filme de Boyle acaba por se sentir muito limitado no alcance emocional e ponto de ligação com o espectador, sendo mesmo frio, talvez perdido no meio de twists e cambalhotas no enredo que acabam por se tornar excessivos – com apenas um visionamento é, inclusive, impossível constatar se todas as pontas soltas são envolvidas no resto da história, ou se ficam ali a cambalear sozinhas num limbo alucinatório.

Eventualmente torna-se óbvio que nem a história nem os personagens conseguem suportar a condução prodigiosa mas totalmente louca de Boyle. A receção divisiva é ponto tomado como certo entre a audiência.

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Todavia, o cartão-de-visita do entretenimento é solidamente preenchido, e do ponto de vista técnico, “Transe” é mesmo um pedaço de Cinema enviado dos céus, temperado generosamente com estilo, sensualidade e energia, bastante familiares na filmografia de Boyle – um autêntico banquete para os olhos e ouvidos: de um lado, a incrivelmente cinemática e dinâmica fotografia digital de Anthony Dod Mantle, do outro a banda sonora sugestiva de Rick Smith que forma o ritmo fundamental do filme e que, entre criações originais, oferece ainda contribuições ecléticas de Moby, Art & Dotty Todd, M People e Kirsty McGee.

Adicionalmente, temos de louvar o trabalho de montagem de Jon Harris que nos submerge num estado permanentemente controlado de pura desorientação.

No campo das representações, enquanto Vincent Cassel nos delicia com mais um dos vilões que sabe criar tão bem, McAvoy oferece mais uma das suas performances intensas (ainda que a personagem não seja particularmente empática). Todavia, é Rosario Dawson que acaba por roubar o show, com uma interpretação angulosa e cheia de pequenos pormenores. É bastante raro para uma mulher conseguir um papel como este, muito menos num thriller baseado no mundo do crime.

Várias comparações foram traçadas entre o filme de Boyle e “Efeitos Secundários” de Steven Soderbergh, estreado entre nós em março passado, e é fácil compreender porquê: começando como filmes completamente distintos daqueles como terminam, ambos tomam enorme deleite em puxar violentamente o tapete debaixo dos pés da audiência. Paralelamente, são ainda veículos criados para exibir vistosamente os dons de cada realizador, e no caso de Boyle a exuberância cinética é quase ela mesma uma obra de arte.

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No final este techno noir faz-nos partir de olho cheio mas coração vazio, como resultado de um puzzle que acaba por valer mais pela soma total, do que pela coleção algo inconsistente das partes, apresentando-se como um filme manipulativo que prefere a emancipação do estilo em favor da substância.

Mas se assim mesmo tiver de ser, mais vale que seja um mestre como Danny Boyle a determinar o estilo.


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