20º Queer Lisboa | Antes o Tempo Não Acabava, em análise

Em Antes o tempo Não Acabava, testemunhamos a existência cheia de dualidades e ambiguidades identitárias de um jovem índio Ticuna no Brasil contemporâneo.

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Nos momentos iniciais de Antes o Tempo Não Acabava, os realizadores Sergio Andrade e Fábio Baldo mostram-nos um ritual de iniciação numa comunidade dos índios Ticuna perto da cidade de Manaus, onde jovens rapazes, entre eles uma versão infantil do nosso protagonista, colocam nas mãos luvas forradas com enormes formigas amazónicas. Nunca nos é oferecido qualquer tipo de contextualização, explicação ou simples descrição do propósito para estas práticas, sendo que a câmara, apesar de próxima dos seus sujeitos humanos, mantém sempre uma certa distanciação objetiva, bastante reminiscente do cinema documental. Este tipo de abordagem é perfeitamente intencional, tentando evitar tanto um estudo antropológico destas pessoas, como uma exploração exótica ao estilo dos estereótipos a que o cinema mainstream nos tem vindo a habituar.

Ao nunca mostrar uma necessidade de explicar as motivações por detrás destas práticas ancestrais, os dois cineastas brasileiros criam um entendimento peculiar com os sujeitos do seu filme. A audiência nunca é colocada num patamar de entendimento superior ou inferior ao das personagens mas sim ao mesmo nível delas, numa realidade onde tais tradições são já uma parte intrínseca da vida quotidiana. No mais violento píncaro destas decisões diretoriais, Antes o tempo Não Acabava expõe-nos a uma prática hedionda aos olhos da nossa sociedade. Nesse momento, a sobrinha de Anderson, o rapaz já adulto que observámos na abertura do filme, é sacrificada devido aos seus problemas de saúde. Ela tem síndrome de Down e, numa comunidade com raízes na tradição nómada, tal deficiência não tem lugar para existir.

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A câmara nunca julga as ações, decisões ou moralidade das suas personagens e assim nunca oferece nenhuma conclusão. Isso pode ser chocante ou frustrante para um público interessado em respostas claras ou num documentário informativo, mas é fácil perceber que essa não é a intenção dos seus criadores. Acrescentando ainda mais frustração à experiência desse público hipotético, Antes o Tempo Não Acabava é um filme que contorna normais regras de linearidade cronológica na narrativa, preferindo uma fluidez temporal que torna toda a experiência num espetáculo de opacidade e ambivalência identitária.

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Essa indefinição e ambivalência é uma perfeita tradução formal do estado da personagem principal do filme, um índio que muda o seu nome para Anderson e que, depois da morte da sobrinha, decide virar as costas à sua comunidade e vai viver para Manaus. Com esta breve descrição, é fácil deduzir que esta é uma personagem de dualidades como a cidade e a aldeia ou tradição ancestral e a modernidade de um Brasil industrializado. Mas as suas complexidades excedem essas superfícies, afinal estamos perante um filme apresentado no Queer Lisboa, e a indefinição também se traduz na sexualidade da personagem, que tanto vemos na companhia de mulheres como a procurar um encontro sexual com um barqueiro que encontra num bar da cidade.

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No fio da navalha entre modernidade e tradição, homossexual, bissexual e heterossexual, masculino e feminino, nativo e branco, Anderson é a figura onde toda a exploração do filme converge e de onde toda a narrativa se desdobra. Seguindo esta linha de pensamento e toda a opacidade que já estabelecemos como uma das principais características deste filme, Antes o Tempo Não Acabava conclui-se com uma cena provocadora na sua clara recusa de oferecer respostas. Depois de ter regressado à sua aldeia e de lá ter sido submetido a uma nova versão do ritual que sofreu no início do filme, o nosso protagonista é visto a embarcar num pequeno barco na companhia de uma mulher branca com quem ele tinha estabelecido amizade e um dos amigos dela. Homem e mulher oferecem-se como possíveis objetos de desejo e o trio fica no meio do rio, a gritar e a ouvir o eco das suas vozes. Emocionalmente é sugerido ao espetador um momento de libertação para Anderson, talvez uma resolução para os seus dilemas e escolhas difíceis, mas a resposta definitiva é-nos negada. Apenas ficamos com liberdade, o conceito, a reverberar nos nossos ouvidos.

Nem tudo é positivo no que diz respeito a esta indefinição no retrato de personagem. Tal como acontece com muitos filmes que tentam utilizar o trabalho de atores não profissionais, Antes o Tempo Não Acabava embate contra a inderrotável parede que é a falta de nuance no retrato humano de Anderson. Quando a personagem se mostra simplesmente a viver em silêncio, não há qualquer problema, mas, quando é inserido algum componente textual, é impossível ignorar a falta de virtuosismo da parte do intérprete. Tal crueza pode ter sido também uma escolha intencional mas, ao colocar cenas como um longo monólogo a seguir à morte da sobrinha, os cineastas estão a forçar um elemento textual ao seu projeto que, simplesmente, não tem capacidade para suportar tal exigência.

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Também a estética realista, inspirada em registos documentais, acaba por trair o filme e alguns dos seus elementos concetuais mais difíceis. Veja-se, por exemplo, o aparecimento de uma presença divina, um ser sobrenatural que fala através de ruídos da floresta. Aí, é conjurada uma atmosfera de realismo mágico, mas a abordagem formal não corresponde, de todo, ao conteúdo, banalizando o momento e esvaziando-o do impacto que o texto e a reação da personagem principal parecem sugerir.

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Em conclusão, Antes o Tempo não Acabava é uma obra preciosa em termos de representação de um setor da sociedade brasileira raramente visto no cinema, mas, a sua execução é tão interessante quanto é frustrante para o espetador e o resultado final deixa muito a desejar. Existe coerência notável em todo o projeto, mas por vezes a coerência é desnecessária quando a modulação e variação seriam preferíveis. Talvez, mesmo assim, o seu ponto de maior sucesso seja mesmo a fluidez temporal que pinta toda a narrativa através de momentos desarticulados entre si, dando a impressão que estamos a ver fragmentos e colagens de uma vida que nos é distante. Não é o suficiente para contrabalançar as fragilidades do filme, mas certamente que isso denota uma certa complexidade valerosa e admirável ambição que, numa versão alternativa do projeto, talvez pudessem ter resultado numa obra de cinema verdadeiramente essencial.

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O MELHOR: Na sua melhor cena, Antes o Tempo Não Acabava mostra-nos Anderson no salão de cabeleiro unissexo onde ele chega a trabalhar. Aí, ele pinta os lábios de vermelho e, com o mesmo batom, desenha motivos tradicionais no seu peito. A barreira entre o feminino e masculino o tradicional e o transgressivamente moderno esbate-se aqui com uma elegância e poder nunca mais alcançados no resto do filme.

O PIOR: Todas as ocasiões em que Anderson fala em prolongadas passagens de texto, especialmente o seu furioso monólogo a seguir à morte da sobrinha.


 

Título Original: Antes o Tempo não Acabava
Realizador:  Sergio Andrade, Fábio Baldo
Elenco:
Anderson Tikuna, Rita Carelli, Begê Muniz, Emanuel Aragão
Queer Lisboa | Drama | 2016 | 85 min

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