Apocalipse nos Trópicos – Análise
Petra Costa, Malafaia e o Sermão da Democracia em Fogo. Entre pastores com jatinhos privados e políticos com sermões na ponta da língua, Petra Costa mostra no documentário “Apocalipse nos Trópicos” como a fé virou arma de guerra na política brasileira. Disponível na Netflix.
Há quem veja documentários para relaxar, como quem liga a Netflix para ver cozinheiros zen a assar pão com fermento natural. “Apocalipse nos Trópicos”, de Petra Costa, não é esse tipo de documentário. É como levar uma chapada política e religiosa logo ao pequeno-almoço e sem direito a pão nem laranjas.
A realizadora brasileira, conhecida pelo poderoso “Democracia em Vertigem”, regressa agora com um filme que parece o lado B do Brasil moderno: uma espécie de reality show teocrático onde pastores evangélicos se tornam reis, rainhas e ministros sem precisarem de coroa, bastando-lhes uma Bíblia na mão e um avião particular na garagem.
Finalmente alguém teve a brilhante ideia de lançar “Apocalipse nos Trópicos” diretamente na Netflix. Porque, sejamos honestos, se este filme estreasse apenas nas salas, iria ser visto por uns quantos críticos, meia dúzia de cinéfilos radicais e um padre curioso.
Assim, está disponível para todos, incluindo aquele motorista de táxi, que simpatiza com o Chega, que acha que “Bolsonaro até tinha umas ideias boas” e que vai ficar a pensar duas vezes depois de ver este documentário. Ou não, porque fanatismo é como um daqueles brilhantes de enfeitar o rosto para as festas: cola-se e nunca mais se despega.
Malafaia: Entre Sermões e Aviões
O grande protagonista deste “apocalipse” tropical é o pastor/senador Silas Malafaia, que entra em cena logo no início de “Apocalipse nos Trópicos” como um simples televangelista de stand-up, capaz de mandar uma piada sobre gays e comunistas com a mesma convicção com que justifica o preço do seu jato privado.
Petra Costa filma-o em “Apocalipse nos Trópicos” com uma mistura de fascínio e incredulidade: como é que alguém que fala com tanto fervor sobre humildade consegue, com a mesma boca, explicar que o avião só desvalorizou “de um milhão para 800 mil dólares”? Talvez no mercado celestial haja promoções Black Friday que nós, pobres mortais, desconhecemos.
Bolsonaro, o Messias (Autoproclamado)
“Apocalipse nos Trópicos” não é só sobre Malafaia. É sobre a teia que junta religião e política num Brasil que trocou a ficção da Globo por uma narrativa ainda mais rocambolesca. Jair Bolsonaro aparece aqui como o “Messias” (não por acaso é mesmo o seu nome do meio), surfando o voto evangélico e o apoio da chamada Bancada da Bíblia no Congresso brasileiro. Petra mostra, com imagens de arquivo, como este caldo de fé e conservadorismo ajudou a catapultar um deputado quase irrelevante para o cargo de presidente do Brasil.
E depois há a tragédia política: a gestão absurda da pandemia, as fake news, o fanatismo que desemboca na invasão ao Congresso em Brasília em janeiro de 2024, com direito a vandalismo, violência e até um manifestante a defecar numa mesa oficial (sim, há imagens, que custam a acreditar que aconteceram). Mas aconteceu mesmo.
Petra Costa: Da Intimidade ao Horror
Se há algo que Petra Costa sabe fazer é transformar política em narrativa cinematográfica sem perder a dimensão humana. Em “Apocalipse nos Trópicos”, a câmara entra na casa de Malafaia, acompanha-lhe o pequeno-almoço, mas não deixa que a familiaridade abafe a crítica.
A realizadora mistura essas cenas com arquivos de pregações, comícios e momentos de puro surrealismo político. Há um momento em que vemos deputados evangélicos a “abençoar” as cadeiras do Congresso e, sinceramente, não sei se dá vontade de rir ou chorar.
30% de Eleitores e 100% de Poder
“Apocalipse nos Trópicos” faz-nos perceber que os evangélicos, que representam cerca de 30% da população brasileira, conseguiram impor a sua agenda política de forma avassaladora. Nenhum partido os ignora nem mesmo o PT de Lula da Silva, que acabou por cortejar este eleitorado para vencer as eleições de 2022.
Mas a pergunta que Petra Costa deixa no ar é: será que este casamento entre religião e política é reversível? Ou será que estamos em geral, não só no Brasil, condenados, mais tarde ou mais cedo a viver sob uma espécie de teocracia camuflada?
O Brasil é o Espelho (Sujo) do Mundo
“Apocalipse nos Trópicos”, mesmo centrado no Brasil, fala efectivamente de um fenómeno global: a ascensão de lideranças populistas e de extrema-direita, que usam a fé como arma de propaganda. Se isto soa familiar, é porque já vimos versões semelhantes nos EUA, na Polónia, na Hungria e, sim, até nas campanhas de WhatsApp do Chega, em Portugal.
JVM
Apocalipse nos Trópicos—Análise
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José Vieira Mendes - 65
Conclusão:
“Apocalipse nos Trópicos” não é uma obra-prima e está até jáum pouco desactualizado, mas é um filme que nos deixa desconfortáveis. Não porque não saibamos da existência deste lado obscuro do Brasil, que já vimos em outras imagens e situações, mas porque Petra Costa obriga-nos a olhar de frente para a forma como o fanatismo se veste de moralidade para impor agendas políticas. Não é um documentário para ver de pantufas e chá é para ver de olhos bem abertos. Se não quiserem ver o apocalipse real, sempre podem rever o de Hollywood, com meteoritos e Bruce Willis. Mas acreditem: o que Petra Costa mostra é bem às vezes mais assustador.
Overall
65User Review
( votes)Pros
O Melhor: Olhar direto e corajoso sobre religião e poder; a montagem tensa, quase de thriller; um tema global, não só brasileiro.
Cons
O Pior: Informação em excesso; faltam mais vozes contrárias ou melhor o contraditório; o tom é quase sempre de indignação.