Banzo: Como nasceu a ‘uberização’ do trabalho? (Entrevista a Margarida Cardoso)
“Banzo”, o novo filme de Margarida Cardoso (“Yvone Kane”) chega finalmente às salas e como que inaugura as estreias de cinema português em 2025, apesar de ser um filme do ano passado. Trata-se de um drama sobre a ’doença’ da escravidão nas antigas-colónias portuguesas, com situações que nos levam aos limites da liberdade e da condição humana. A MHD falou com a realizadora no final da sessão em antestreia no Cine Atlântico 2024-Mostra de Cinema Português Contemporâneo, realizada em Angra do Heroísmo, Ilha Terceira, em Outubro passado.
O documentário “Understory” (2019), o ensaio de Margarida Cardoso sobre o cacau e todas as suas ramificações culturais e económicas pelo mundo colonial foi a base deste seu novo filme de ficção intitulado “Banzo”, em grande parte rodado em São Tomé e Príncipe e que tardava em estrear nas salas comerciais.
A ação de “Banzo”, situa-se em 1907, quando Portugal vivia os últimos e dramáticos anos da monarquia e do Império Colonial, que se estendia até ao Extremo-Oriente. Um jovem médico interpretado por Carloto Cotta (o doutor Afonso), desembarca em S. Tomé e Príncipe, vindo do Norte de Angola, sabe-se lá porquê, acompanhado por um amigo negro.
Aos poucos, vamos observando, interpretando e sistematizando o dia-a-dia de uma colónia africana e das roças do cacau, as rotinas das várias personagens e as relações que estabelecem entre si as pessoas, num mundo fechado onde homens, mulheres e crianças separados pela classe, religião e capacidade uns de exercerem poder e outros não, se misturam, sem qualquer outra alternativa de mudança.
A palavra que dá nome ao filme, ‘banzo’ (do quimbundo
Tratava-se de um estranho e inexplicável ressentimento, a saudade dos seus ente queridos e da sua terra, o amor por alguém, uma profunda cogitação sobre a perda da liberdade ou sobre os maus tratos que mesmo depois da abolição da escravatura, suportavam e que lhe davam uma forte melancolia.
Do primeiro ao último fotograma este filme incrível e intenso, transporta-nos para sentimentos de universalidade e de verdade que se sentem na abordagem dos múltiplos rostos, contradições, limites e abismos da condição humana.
MHD: Falaste-me que “Banzo” nasceu da tua experiência no documentário, “Understory” (2019), mas concretiza-me mais um pouco relativamente a esta história do filme. Onde é que foste buscar esta história? É uma história verdadeira? É baseada em algum romance?
Margarida Cardoso: É uma história que começou a nascer na minha cabeça, que não é baseada em nenhum romance, mas sobre várias histórias que ouvi, quando preparava o “Understory”. Passei muito tempo nos arquivos de São Tomé e Príncipe, que na realidade são uma espécie de um espelho dos arquivos portugueses.
Eles fizeram-me cópias de praticamente todos os documentos que precisei. O “Understory”, é um filme híbrido entre documentário e ficção, que segue um bocadinho a história da planta de cacau e todas as explorações à volta da exploração das grandes plantações.
Estive muito tempo em São Tomé a ler muitas coisas, inclusive sobre as chegadas e as partidas dos navios, portanto, alguns com os nomes das pessoas. Às vezes havia os nomes de pessoas como, Maria Francisca, ou então a Senhora Dona Maria… Coisas que nos relacionam com uma sociedade que foi ali criada em São Tomé, tudo à volta das plantações de cacau e também de situações muito violentas.
MHD: Que documentos eram esses que tiveste acesso?
MC: Eram relatórios da Curadoria dos Serviçais, que era um sítio onde as pessoas podiam apresentar as suas queixas. Oficialmente eram contratadas assinavam com o dedo, mas no fundo, como está no filme, eram tratados como escravos. Li muitos desses relatórios e fui entrando nesse mundo que me pareceu, de uma grande ambiguidade. Havia também relatórios que são também pequenos bilhetes que os homens do mato transmitiam, entre si de um sítio para outro. Eram brancos que iam para São Tomé, pois não tinham condições de sobreviverem em Portugal continental.
Assim foi-se formando na minha cabeça uma história à volta daquele agregado social, com os brancos, com os africanos, que chegavam um bocadinho de todo o lado, com aquele ambiente que se vivia nas plantações, nas roça como se diz em São Tomé… E depois também havia os sistemas de trabalho em Portugal continental, em que o hospital era uma coisa muito importante.
O hospital era o sítio onde se recebia, onde se tratavam os trabalhadores. Porém, tratavam-se esses trabalhadores, a mão-de-obra barata, quase sempre como mercadoria. Tinham que estar bem, mas para fazerem o seu trabalho. Foi nessa altura que, quando estava a explorar sobre os hospitais, encontrei também relatórios médicos, e em muitos, havia pessoas que faleceram, e a causa da morte era a nostalgia (ou melancolia).
Comecei-me a interessar por isso, da nostalgia e encontrei o ‘banzo’, que era o nome que se dava, muito tempo antes da abolição da escravatura, a uma doença comum a esses grupos de pessoas, que chegavam ao Brasil, para trabalhar nas plantações, vindas, sobretudo, de Angola.
MHD: O que quer dizer exatamente ‘banzo’ e que significado tem no teu filme?
MC: Diz-se que Banzo vem de Mbanza. Em quimbundo mbanza, quer dizer ‘aldeia’ (casa). Portanto, eram as saudades de casa e por isso as pessoas suicidaram-se com essas saudades de casa. E daí nasceu esta ideia de criar esse universo onde os colonizadores ou as pessoas que têm determinado poder, têm de confrontar-se com algo bastante desarmante ou que não estavam habituadas a ver, que era terem à sua frente pessoas, com coragem suficiente para se matarem.
E nessa altura, no início do século XX, essa questão de poderes ter a vontade de te matar e poderes ter essa liberdade sobre o teu próprio corpo, era uma coisa completamente estranha para os europeus e portugueses. Estas pessoas tinham a possibilidade de escolherem o que queriam fazer consigo próprias. O suicídio era o que mais sublinhava a questão de serem humanas, já que no fundo não eram assim consideradas. E ao mesmo tempo era uma fuga…
MHD: Essa foi a base e a partir daí….?
MC: Depois houve outros personagens que apareceram como o fotógrafo ou a questão da imagem que vêm de um personagem que é mais ou menos verdadeiro. Houve uma pessoa que escreveu um pequeno artigo sobre um fotógrafo africano que viajava um pouco por toda a África. Digamos que criava memórias. Não, era um fotógrafo comercial como este do filme. Era um homem que andava a ganhar a vida e realmente também se chamava Alphonse. Fui buscar esses arquivos, depois juntei tudo e deu este filme.
MHD: Há uma expressão muito engraçada em português que é ‘para o inglês ver’. Era uma expressão que também era muito usada lá em São Tomé. E a razão de existir o hospital…
MC: Nessa altura os ingleses andavam muito em cima da colonização portuguesa, porque efetivamente a escravatura tinha acabado, mas no fundo continuava na mesma com os tais contratos de trabalho. Vem dessa altura aquilo que todos nós presenciamos hoje em dia e que agora se chama a ‘uberização’ do trabalho.
Também estava interessada em retratar essa altura porque corresponde a um momento muito importante onde a tecnologia e a ciência em Portugal e nas plantações parecia estar muito desenvolvida. Nem tudo foi mau. Essa tecnologia era super-avançada em relação ao processo da plantação de cacau e da transformação dos grãos. Éramos estudados por todos os outros países. Tínhamos plantações-modelos, onde esse poder da ciência e da tecnologia fazia com que as pessoas acreditassem nessa ideia de que era uma mais-valia civilizacional.
Os proprietários das roças eram famílias que viviam em Lisboa e grande parte das roças pertenciam também ao BNU (Banco Nacional Ultramarino). Eram os mesmos que depois se transformaram nos grandes grupos económicos, que ainda hoje existem em Portugal. Uma boa parte, curiosamente, ainda vem do cacau.
MHD: Falemos do episódio da história da arma japonesa do personagem do Carlotto Cotta. Qual é a sua importância na história? Que representa aquela arma?
MC: A arma japonesa é um símbolo de poder.
MHD: No filme o personagem do médico Afonso (Carloto Cotta) é um personagem-mistério, que a gente não sabe muito bem porque foi parar ali….
MC: É o que se chama um personagem passivo no cinema. Não faz aquilo que normalmente os personagens fazem nos filmes que é fazer avançar a narrativa. Achei que ao construir o personagem do Carloto dessa forma havia sempre esse mistério, além da relação que havia com aquele homem que chega com ele a São Tomé.
Queria que cada vez que pensássemos de onde é que vem o personagem do Carloto, o que é que ele está ali a fazer, que voltássemos ao início, na altura em que ele põe o seu ouvido no coração daquela pessoa. O espírito desse personagem que desapareceu logo no início está sempre presente e até pode ser o o amigo que vem com o Afonso (Carloto Cotta), que não sabemos se existe ou mesmo que viesse alguém com ele.
O Carloto é exatamente uma ideia, não é bem um personagem. A arma na verdade, pode significar uma espécie de testemunho do passado desse homem, que representa um fundo mais selvagem, uma coisa que está lá para trás, que não sabemos de onde vem. Essa arma é invejada e acaba nas mãos do Ismael (Rubens Simões), um rapazinho muito branquinho e com o fato muito certinho. Esse rapaz acaba no final um pouco desnorteado e muito sujo.
MHD: Como escolhestes estes actores e qual foi a reação deles a esta história de “Banzo”?
MC: A reação em que sentido? Antes de filmar ou depois?
MHD: As duas, que questões que te puseram? Por exemplo, se acharam interessante, se descobriram coisas novas?
MC: Cada realizador tem o seu método. Normalmente dou um guião e convido para o papel as pessoas mais adequadas para o papel. Depois dizem-me se querem ou não participar e vamos ensaiar. Acho que os atores trazem sempre muitas coisas. Fazemos leituras do guião e tiram-se algumas dúvidas. Fiz alguns ensaios sobretudo com o Carloto e o Rubens Simões (Ismael. Espero sempre que me tragam algo de novo e que inventem.
O trabalho dos atores é sobretudo apoderarem-se dos personagens. Não acredito nada que se disser qual é o background do personagem, que eles venham a fazer exatamente as coisas como quero. Cada ator vai criar o background do seu personagem, tendo em conta aquilo que escrevi.
Há actores que o pedem, mas há outros que não, como por exemplo o Romeu Runa (Augusto). O personagem dele é um homem do mato. Aparece poucas vezes e descrevi-lhe apenas o essencial. Quero é que os actores me questionem, que tenham ideias sobre as coisas. Há uma altura em que falamos sobre isso. O que é que o ator acha da sua personagem.
A interpretação é sempre uma situação muito difícil e a representação do mal mais ainda, porque temos pessoas escravizadas ou a sofrerem e outros a representarem os colonos. É um ambiente onde tem que existir uma certa sintonia entre todos. Tínhamos sempre muitos figurantes em cena a fazerem de escravos, penso até que as coisas correram muito bem.
Agradeço muito sinceramente às pessoas que representaram aquelas situações, sempre com consciência do que estavam a fazer e acreditando que aquilo serviria para muito mais, do que só aquela representação.
MHD: Como foi filmar em São Tomé e Príncipe?
MC: É difícil. De vez em quando lá vinham umas tempestades tropicais.
MHD: Mas também conseguiste tirar partido disso, a fotografia é muito bonita e os ambientes são muito escuros…mas de facto torna-se tudo muito belo e fascinante em “Banzo”. É um bocadinho pesado mas é assim o ambiente em São Tomé?
MC: Nunca gostei muito do São Tomé turístico. As pessoas dizem que São Tomé e Príncipe é muito bonito, mas acho sempre que é muito pesado e muito carregado. É um sítio onde ainda sentes perfeitamente todas as coisas que estão no filme, que se passa no século passado ou seja há cento e tal anos. Ainda hoje se sente aquela pressão, a existência daquelas roças e aquele sistema de repressão, ainda está muito presente.
Filmar em São Tomé é extremamente difícil, mas se me disserem para fazer tudo em estúdio e com as palmeiras que já se fazem digitalmente eu diria logo que não. O momento e o lugar onde se está a filmar são muito importantes. Todos os dias havia tempestades, estradas que desabavam, mas estávamos num ambiente natural muito semelhante ao que queremos retratar no filme.
Quando voltamos para Portugal para fazer alguns interiores, estávamos muito cansados, depois dos muitos problemas em São Tomé. Mas lá estávamos sempre bem dispostos, apesar das catástrofes atrás de catástrofes e das enormes dificuldades em filmar. Em Torres Vedras para fazer uns interiores a equipa parecia que demorava a despertar.
Em São Tomé isso não acontecia, estávamos todos alerta às vezes com medo mas despertos. Aqui estávamos todos muito em baixo, havia uma energia muito diferente muito mais baixa. Portanto, apesar de ter sido muito difícil filmar em São Tomé e a produção ter sofrido muitíssimo, isso acabou por se reflectir no filme e isso é bom, porque aumenta-lhe a carga dramática.
MHD: Uma pequena curiosidade, como reconstruíram aquele navio encalhado?
MC: O naufrágio do navio é um efeito digital que foi produzido em França. É uma cena muito bonita e está muito bem feita. De facto, digitalmente já se fazem coisas muito bonitas e bem feitas. Não está lá nada e o ator está até a olhar pelo mar. Os efeitos digitais aplicaram-se felizmente em várias cenas: os edifícios são pintados, os barcos mesmo os pequeninos são todos feitos digitalmente. Nesse aspecto os efeitos digitais ajudaram muitíssimo.
MHD: Há outra coisa que eu gosto muito que é a banda sonora que acrescenta ali também uma certa tensão dramática…
MC: No genérico a autoria é do Rutger Zuydervelt, mas se procurarem no Spotify, chama-se Machinefabrik é um compositor holandês. Normalmente faço a minha playlist, mas fui parar a uma outra onde havia músicas para ouvir ao domingo e encontrei várias muitas músicas dele.
Depois comecei a ouvir uma playlist do Thom Yorke (guitarrista e vocalista dos Radiohead) músicas que ele ouvia ao domingo e lá estavam também músicas do Machinefabriek. Por coincidência o filme tem uma produção com os Países Baixos e convidei-o para trabalhar na banda sonora. Foi muito bom trabalhar com ele, fez tudo muito rápido e até tem um disco editado com o nome do “Banzo”.
MHD: Aquela figura do ancião em “Banzo” é um bocado simbólica?
MC: O facto do Senhor António ser mestiço era muito importante. Quando eles vão para aquele morro é a pessoa que está lá. É a pessoa que volta no final. Ser mestiço quer dizer que não se pertence a lado nenhum. Está só ali preso naquelas ruínas e talvez dali nunca saia mais.
São pessoas que apesar de terem nascido ali e terem provavelmente vivido sempre ali, não são dali, porque nascem desta mistura de violência e de várias outras relações. Representava o que se deixa para trás e é como se não existisse. Está lá como um fantasma, vê tudo, é ele que indica onde está o barco para os outros, é ele que estava a ocupar o quarto do patrão, que é posto na rua e vai para as senzalas.
Essas figuras como o senhor António vamos encontrá-los em todos esses sítios que foram colonizados. Há senhores António por todo lado. Um dia ia no carro e vi o ‘senhor António’. Chama-se senhor Tutu é um polícia voluntário, que faz parar os carros para deixar as pessoas e as crianças atravessarem as passadeiras.
Disse para mim, cá está este é o senhor que eu quero fazer aquele papel sempre muito diligente. Fui então falar com o senhor Tutu ele estava no meio da rua e disse-me que era filho de uma mulher negra e de um homem de Viseu.
MHD: A Adélia é outra personagem bastante característica e misteriosa….
MC: É a criada da casa que ouve tudo e engole em silêncio mas que não é uma escrava. É uma condenada que provavelmente cometeu um crime na metrópole e foi degradada. De facto havia também essas pessoas que eram degredadas. Grande parte do início da colonização portuguesa foi feita só com degredados para Angola, Moçambique e Brasil.
As colônias eram lugares de degredo e na realidade a Adélia é uma personagem que começou a aparecer quando estava a escrever o argumento é que começou-se a materializar um pouco. Sabia que existiam essas degradadas e acho que começou a aparecer quase como um bocadinho como o olhar do personagem do Carloto.
E é só com um olhar que vamos seguindo e esta mulher aparentemente forte, mas que é também uma pessoa que não tem lugar no mundo. Que sabemos que não é dali mas que não tem nenhum sítio para onde ir. Dramaturgicamente a personagem apareceu porque precisava de alguém que estivesse a ver outras coisas, ao mesmo tempo que representava essas pessoas que acabam por ficar sem sítio no ‘mundo dos bons’.
Quem é Margarida Cardoso, realizadora de “Banzo”?
Margarida Cardoso começou o seu trabalho como realizadora em 1995, explorando temas que cruzam as suas experiências históricas pessoais com questões pós-coloniais proeminentes na história recente de Portugal, como a revolução portuguesa e a guerra colonial em África. O seu trabalho prévio inclui Sita: A Vida e o Tempo de Sita Valles (IndieLisboa, 2022) Understory (IndieLisboa 2019 ) Yvone Kane (Tallinn Black Nights, 2015), A Costa dos Murmúrios (Veneza, 2004, IFFR, 2005), Kuxa Kanema – The Birth of Cinema (FIDMarseille, Cinéma du Réel, Visions du Réel, 2003) e a curta-metragem Entre Nós (Locarno, 1999).
“Banzo”, de Margarida Cardoso. Com Carloto Cotta, Hoji Fortuna, Rúben Simões, Gonçalo Waddington, Sara Carinhas. Drama, Portugal /Países Baixos, 2024, 127min. (Pedra No Sapato/NOS Audiovisuais).