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Banzo, a Crítica | Carloto Cotta e Hoji Fortuna marcam presença no IndieLisboa com obra de Margarida Cardoso

A mais recente edição do IndieLisboa recebeu “Banzo”, a obra de Margarida Cardoso protagonizada por Carloto Cotta e Hoji Fortuna.

Estreia mundial no 21º IndieLisboa, “Banzo”, 2024, escrito e realizado por Margarida Cardoso, constitui seguramente um dos grandes momentos da sua programação e perfila-se desde já como um dos melhores filmes portugueses do ano e, sem qualquer favor “nacionalista”, uma das mais importantes obras de ficção apresentadas no festival. Trata-se na verdade de uma produção de Filipa Reis, da produtora Uma Pedra no Sapato, co-produzida com François d’Artemare (Les Films de L’après-midi), Yohann Cornu (Damned Films), Frank Hoeve, Katja Draaijer (Baldr Film), com apoio financeiro do ICA – Instituto do Cinema e do Audiovisual, Fundo de Apoio ao Turismo e ao Cinema, Câmara Municipal de Lisboa, CNC – Centre National du Cinéma et de l’Image Animée, Aide aux Cinémas du Monde, Institut Français, Région Île-de-France, Netherlands Film Fund, Netherlands Film Production Incentive, Eurimages – Council of Europe, co-financiada pela ZDF-ARTE e pela RTP – Rádio e Televisão de Portugal. Lista longa, sim, mas o seu a seu dono. Seja como for, uma coisa prevalece sobre a diversidade do dinheiro investido, ou seja, o sentimento de universalidade e verdade que se sente do primeiro ao último fotograma na abordagem dos múltiplos rostos, contradições, limites e abismos da condição humana.

Tristeza De Morte No Paraíso Infernal

Banzo IndieLisboa
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Neste caso, através da análise fina do comportamento das diferentes personagens cujos percursos de vida, para o melhor e para o pior, iremos acompanhar no quadro de um espaço cercado pelo Oceano Atlântico e atravessado pela linha imaginária do Equador, as Ilhas de São Tomé e Príncipe. Território literalmente situado entre o Norte e o Sul do nosso planeta, na divisória de dois hemisférios que não se limitam a ser parte de uma simples realidade geográfica. Há antes de mais uma partilha de percepções entre o que se passa a Norte, a parcela desenvolvida, e a Sul, a subdesenvolvida, se falássemos apenas na linguagem dos analistas das realidades económicas subjacentes. No entanto, do ponto de vista cultural e espiritual, a conversa, se a quisermos séria, deveria e deve ser outra.

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Para os devidos efeitos, no filme “Banzo” a argumentista e realizadora decidiu situar a acção no ano de 1907. Portugal vivia os últimos e dramáticos anos da monarquia (o regicídio e a morte do Rei D. Carlos I, assim como a do seu herdeiro, Luís Filipe, sucederia no ano seguinte) e o Império Colonial estendia-se até ao Extremo-Oriente. Nesta época, viajar para as então longínquas paragens africanas ou asiáticas não era uma festa. Bem pelo contrário, a maior parte das vezes significava um grande sacrifício e noutros até uma inevitabilidade, sobretudo quando alguém era para lá degredado por qualquer crime cometido.


Nunca saberemos com pormenor por que motivo um dos protagonistas de “Banzo”, o médico interpretado por Carloto Cotta, desembarcou em S. Tomé e Príncipe, mas saberemos o seu nome, Afonso (o doutor Afonso) e saberemos que antes estivera no Congo, provavelmente no Norte de Angola, no chamado Congo Português. Esta minha especulação a propósito do mencionado espaço angolano, felizmente, constitui algo que a realização de Margarida Cardoso nos permite. Esta nossa liberdade ou amplitude de interpretação cruza-se desde cedo com o pressuposto de a autora não nos dar mais do que a informação que precisamos saber.

Cabe assim ao espectador conjecturar e depurar na sua memória o que subjectivamente vai observando, saboreando e sistematizando aquilo que existe ou não de substantivo na observação do dia-a-dia de uma colónia africana e das rotinas levadas a cabo pelas personagens que, com a expressão das suas atitudes e pontos de vista, dão por fim consistência ao processo narrativo. Personagens que acabam por encontrar o seu lugar próprio na dialéctica de relações que inevitavelmente se estabelece num mundo fechado onde homens, mulheres e crianças separados pela classe, religião e capacidade ou não de exercer o poder se misturam, quer queiram quer não.

Banzo IndieLisboa
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Dito isto, precisamos agora de falar sobre essa palavra que dá nome ao filme, banzo (do quimbundo mbanza, “aldeia”), e sobre o que ela significa. Salvo melhor informação, foi o advogado Luís António de Oliveira Mendes quem primeiro mencionou esta doença num relatório elaborado para a Real Academia das Ciências de Lisboa, em 1793: “Das principais moléstias crónicas que sofrem os escravos, a qual pelo decurso do tempo os leva à sepultura, uma vem a ser o banzo. Ressentimento entranhado por qualquer princípio, como por exemplo: a saudade dos seus e da sua pátria; o amor devido a alguém; a ingratidão e aleivosia que outro lhe fizera; a cogitação profunda sobre a perda da liberdade; a meditação continuada da aspereza com que os tratam; o mesmo mau trato, que suportam; e tudo aquilo que pode melancolizar.

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É uma paixão da alma, a que se entregam, que só é extinta com a morte: por isso disse que os pretos africanos eram extremosos, fiéis, resolutos, constantíssimos, e susceptíveis no último extremo do amor e do ódio (…). Este mesmo banzo por vezes observei no Brasil, que matara a muitos escravos; porém sempre por efeitos do ressentimento do rigor, com que os tratavam os seus senhores.” Na prática, esta palavra que categorizava um sentimento de profunda melancolia, diríamos mesmo, uma mais ou menos óbvia depressão, era igualmente usada para referir a morte voluntária dos que se encontravam escravizados e sem direitos, ou dos que eram forçados a sair das suas aldeias e dos grupos sociais de origem para noutras colónias assinarem contratos destinados a explorar a sua força laboral como verdadeiros proletários, pouco mais do que escravos.


Para além das marcas da pressão e dos castigos infligidos pelos seus donos ou patrões, o emprego de atitudes radicais e extremas como modo de combaterem as adversidades da sua frágil existência passava, entre outros aspectos, pela consubstanciação de um desejo de morte, pela recusa de ingerir alimentos (uma espécie de greve de fome) e pela geofagia, ou seja, a ingestão habitualmente fatal de matéria orgânica encontrada no solo. Tudo isto faz parte da realidade que o doutor Afonso irá encontrar nas suas funções de médico de uma roça como tantas outras. Nela, irá juntar-se aos que já lá viviam: um outro médico, resignado com a sua sorte, o administrador e sua mulher, o atormentado adjunto do administrador, os criados e serviçais, os capatazes (brancos e negros).

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Em suma, o organigrama de carne e osso que habitava o micro-cosmos de plantações que o colonialismo português estabeleceu naquelas paragens insulares para garantir a exploração das principais matérias-primas de São Tomé e Príncipe: o cacau, o café, a cana-de-açúcar. Incapaz de compreender as razões mais fundas da crise de apatia e melancolia provocada pela doença e, sobretudo, por sentir uma redutora impotência na procura infrutífera de compreender o que iria na alma dos que dela sofriam, o doutor Afonso acaba por aceitar ir com os serviçais até um sítio remoto onde era suposto os doentes atacados pelo banzo encontrarem uma certa autonomia pessoal, alguma iniciativa que os levasse a recuperar da condição depressiva. Trabalho duro, associado a práticas coercivas pouco abonatórias para os valores cristãos e ocidentais, mas compensado com a ocupação de casas modestas onde os semi-escravos podiam manter um mínimo de organização social e familiar.

Banzo IndieLisboa
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Não obstante, nada que os fizesse partilhar o sentimento de liberdade que era conceito impossível de conjugar num qualquer regime colonial, podemos dizer, mesmo entre os agentes e representantes do poder central metropolitano. Será por isso que considero magnífica a ideia de introduzir na acção uma personagem singular, o negro Alphonse (Hoji Fortuna), de quem curiosamente iremos saber um pouco mais do passado, por contraste com aquilo que sabemos dos restantes interlocutores. Trata-se de um fotógrafo que aprendera a arte nas suas andanças pelos caminhos cruzados da África negra, um homem que se considera livre, e por isso não se estranha que ele percorra a ilha montado num cavalo, aparentemente sem restrições, um privilégio se considerarmos as provações dos que a pé se deslocaram para o morro chuvoso da quarentena ou do exílio que assim isolava os doentes com banzo dos restantes africanos.

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De certa maneira, na sequência fulcral em que Alphonse dialoga olhos nos olhos com o doutor Afonso, referindo-se a um conjunto de chapas fotográficas com cenas exemplares da vida na floresta africana onde esta surge sobretudo como pano de fundo do retrato dos serviçais, as suas palavras são as que mais se aproximam da chamada verdade da mentira, ou seja, da ficção que ele irá vender sobre a vida dos que haviam ali sido retratados. De certo modo, através dos processos químicos da fotografia, irá fixar para sempre a alma dos que se perfilaram diante da sua objectiva. Essa alquimia redentora fará dele o detentor do segredo maior que este filme encerra, a verdadeira natureza e capacidade de manipulação da alma humana e, no limite, quem sabe, a mais improvável cura para essa maleita chamada banzo. Em suma, os que forem ver as fotografias só vêem o que quiserem ver, e não a verdade dos factos por detrás de um olhar distante e absorto. Na prática, para esses a doença nunca existiu…!

Banzo, a Crítica

Movie title: Banzo

Director(s): Margarida Cardoso

Actor(s): Carloto Cotta, Hoji Fortuna, Rúben Simões, Gonçalo Waddington, Sara Carinhas

Genre: Drama, 2024, 127min

  • João Garção Borges - 100
100

Conclusão:

PRÓS: Magnífica obra fílmica onde Margarida Cardoso demonstra mais uma vez as suas inegáveis qualidades e aptidões como realizadora e argumentista.

Filme isento de lugares-comuns, planificação económica e muito eficaz, que nos interroga e impele a descobrir o outro lado da alma, e não apenas da alma africana.

Belíssima Direcção de Fotografia, que evita o habitual folclore da representação do exótico.

Excelente reconstituição histórica: cenografia, adereços, guarda-roupa, caracterização e penteados.

Banda Sonora e banda musical perfeitamente articuladas, o que permite consolidar o pulsar global desta longa-metragem em que as atmosferas filtradas de um espaço fechado no interior da Natureza e cercado pelo mar se conjugam de forma exemplar com o percurso e o devir, igualmente brumoso, das diferentes personagens.

CONTRA: Nada.

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