LEFFEST ’19 | Black Mother, em análise
“Black Mother” de Khalik Allah é um poderoso documentário e um dos maiores destaques do ciclo Looking for Homeland da 13ª edição do Lisbon & Sintra Film Festival.
O traduzir da emoção, o cristalizar da memória e a materialização do sonho. Muita é a arte que se dedica a tais afazeres, raramente cumprindo-os na plenitude. No cinema, muita é a poesia audiovisual que é feita em nome desses objetivos. Normalmente, a narrativa é o caminho mais fácil, dando ao espectador e ao cineasta o prisma de personagens e enredos para filtrar as realidades humanas e lhes dar forma. Isso é a convenção, mas está longe de ser a única opção do artista empenhado. Também há, pois claro, a via mais arriscada e imprevisível, quando a ambição se cruza com o engenho por testar e chegamos ao experimentalismo.
Aqui pela MHD, raramente falamos de cinema experimental. Julgá-lo através dos mesmos critérios aplicados a objetos mais tradicionais parece-nos um exercício em injustiça generalizada. Para nada se dizer da futilidade de tais tentativas críticas. Contudo, de vez em quando, lá surge um filme que exige ser explorado e falado, que demanda a nossa atenção e se recusa a largá-la até termos cantado o seu elogio e tentado o evangelho do leitor. Foi isso mesmo que aconteceu com “Black Mother”, um dos poucos documentários programados no LEFFEST e uma das suas mais brilhantes joias cinematográficas também.
Na interseção do batismo e do retrato antropográfico, do lirismo e da documentação de histórias coletivas, este é um objeto tão multidimensional quanto difícil de explicar. Trata-se da terceira longa-metragem de Khalik Allah, um consagrado fotógrafo americano, que aqui se propõe a fazer a homenagem da nação jamaicana, sua cultura, seu povo e suas mães. O olho de fotógrafo do realizador é de louvar e faz-se sentir através de toda a obra. Quando a câmara deambula por ruas caribes, sem aparente rumo, as imagens são de uma beleza extraordinária. Um simples grande plano é toda uma sinfonia de cores matizadas e texturas granulosas. Uma missa é uma tempestade de sonoridades caóticas.
De facto, a qualidade imagética é algo que “Black Mother” está sempre a realçar e sublinhar, suas variações técnicas uma constante chamada de atenção às proezas que ocorrem atrás da câmara. Allah mistura o documentário filmado em estilo livre pelas ruas com entrevistas mais encenadas. Pelo meio, inclui tableaux simbólicos e interlúdios poéticos. No entanto, sempre que pensamos que entendemos o jogo, um golpe estilístico desestabiliza o engenho sem, no entanto, trair a coerência dos seus argumentos. É um filme na corda bamba, um filme que nela salta e vacila, mas nunca cai e assim nos conquista os mais intensos dos aplausos.
Tais variações estruturais são uma questão da montagem e do guião, mas até a fotografia varia com o frenesim de um artista inebriado pela sua mesma inspiração. Falámos do grão dos retratos urbanos, mas nada ainda referimos dos espicaçares de limpidez digital. O analógico e o virtual dançam e trocam o passo um ao outro, fazendo de imagens da mesma pessoa experiências visuais distintas. Isso reflete a própria plasticidade ideológica deste retrato de imensa franqueza. A mesma voz pode-nos compor todo um manifesto sobre os tremores da história e, um minuto depois, deixar-se levar por xenofobias feias. No mesmo gesto se faz a celebração da mais conservadora das matriarcas e se celebra a autonomia de pensamento de uma prostituta marginalizada.
Allah adora os seus sujeitos, mas também não esconde suas arestas mais vivas. No meio de toda esta humanidade filmada, a mãe preta é quem reclama o direito de titular a obra e é através do corpo feminino que o filme começa e acaba. É esse corpo que teima a dar forma ao que podia ser amorfo. É o corpo e é a mãe, a mulher em espírito e fecundidade, que aqui ajudam observações aparentemente dispersas a se entrelaçarem num discurso singular. A mãe preta é quem fez nascer os jamaicanos e quem amamenta um filme que, no píncaro do génio ou da insanidade, parece querer resumir tudo o que é ser desse país, toda a sua beleza e complicada humanidade em 77 minutos de incessante estímulo audiovisual.
Esse mesmo vigor de vontade e de informação, faz com que os devaneios meio abstratos do filme nunca cansem ou entediem. Raro é o documentário experimental que pode louvar-se de tais méritos, mas “Black Mother” é uma genuína peça de entretenimento. Mesmo que esqueçamos assuntos de intelectualidade pretensiosa, há uma corrente emocional forte que nos captura o olho e exalta os ânimos. Há sentimento forte e há aquela já referida montanha-russa de escolhas formais. Há a velocidade de ideias sobrepostas e a beleza esmagadora de centenas de caras a brilharem na tela e a pedirem que as olhemos como seres humanos e como ícones de uma pintura épica.
Nem tudo funciona sem mácula, mas assim é o fado de todo o experimentalismo deste calibre. Algumas das brincadeiras sonoras são mais irritantes que inspiradoras e a manipulação dos aspetos e formatos do enquadramento tendem a trair a fricção fluida que os vários registos proporcionam apesar da sua diversidade. No entanto, isso são questões menores e “Black Mother” muito ofusca as suas fragilidades com uma qualidade tão luminosa que nos faz bradar aos céus que o cinema está mais vivo que nunca e na sua glória máxima. Viva “Black Mother” e sua audácia, viva as pessoas que nela são retratadas e o cineasta genial que nos proporcionou tal maravilha. Obrigado Khalik Allah.
Black Mother, em análise
Movie title: Black Mother
Date published: 23 de November de 2019
Director(s): Khalik Allah
Genre: Documentário, 2019, 77 min
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Cláudio Alves - 90
CONCLUSÃO:
“Black Mother” é uma tapeçaria de rostos e religião, de espiritualidade e nacionalismo queimado. É uma homenagem e um retrato realista, uma canção indefinida e um tratado concreto. A Jamaica é a mãe preta e sua crença, seu corpo e sua beleza. “Black Mother” é cinema em toda a sua glória.
O MELHOR: O primor fotográfico de todo o filme, especialmente as entrevistas na rua.
O PIOR: A brevidade é uma bênção, mas, face a tamanha maravilha de cinema, também pode ser frustrante. Queremos mais “Black Mother”, mais deste tipo de expressão artística em queda livre num poço de criatividade astúcia documental.
CA