"Birth - O Mistério" | © New Line Cinema

Cannes em Casa | Birth – O Mistério (2004)

Enquanto o Festival de Cannes se desenrola na Riviera Francesa, podes descobrir o trabalho dos realizadores a concurso em casa. Esta programação festivaleira à distância, chega hoje ao cinema de Jonathan Glazer que este ano compete pela Palme D’Or com “The Zone of Interest.” Um cineasta com produção esporádica, esse é o primeiro filme dele numa década. Contudo, todas as suas façanhas têm recebido aclamação crítica, ora aquando da sua estreia ou em retrospetiva. Consideremos o exemplo de “Birth – O Mistério,” também conhecido como “Reencarnação.” Massacrado pelo público em 2004, os anos têm sido simpáticos para o drama, elevando-o ao estatuto de obra-prima incompreendida. Pela sua interpretação, Nicole Kidman recebeu uma merecida nomeação para os Globos de Ouro.

A Nova Iorque coberta de neve, um perfeito postal de Inverno – assim começa “Birth.” Trata-se de um prólogo hipnótico, com palavras céticas soando sobre um poema visual de morte tão bela que quase parece um milagre. Este é o último dia de Sean, um professor que afirma não crer na reencarnação no mesmo momento cinematográfico em que a sua figura colapsa em pleno Central Park. A música de Alexandre Desplat embala o momento, trazendo um estranho calor ao quadro gélido. A fotografia difusa de Harry Savides ajuda, como que dissolvendo a realidade numa névoa de celuloide. Sem verbalizar, propõe-se logo a ideia insidiosa que o fim é um início.

birth critica cannes em casa
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Jonathan Glazer começou a carreira no panorama dos anúncios e vídeos musicais, especializando-se na criação destas passagens tão súbitas quanto intensas. Há uma economia judiciosa nos seus idiomas formalistas, uma capacidade soberba de induzir deslumbramento com muito pouco, de transmitir espetacularidade num abrir e fechar de olhos. Talvez por isso as suas longas-metragens sejam tão destras no jogo rítmico, distendendo-se em compasso glacial sem jamais parecerem longos demais. Cada minuto conta, mesmo quando nada acontece e cada fotograma é uma fonte rica em atmosfera, significado, informação ou ordenada desordem.

Nesse sentido, o primeiro movimento de “Birth” serve como ensinamento, o filme dando-nos uma aula em como assistir ao seu monástico melodrama. Tal introdução é necessária pois a ambiguidade reinará sobre a seguinte narrativa, quando se salta uma década no futuro e se encontra Anna, a viúva de Sean, preparando-se para o segundo matrimónio. Certa noite, em tempo de festa para a matriarca da família, um estranho rapaz aparece-lhe em casa. Ele é o filho do porteiro e afirma ser Sean reencarnado, ali presente para avisar Anna contra o seu iminente casamento.

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Ao início, este sinistro agoiro é encarado como baboseiras, mas a sugestão do impossível faz germinar a dúvida na terra fértil do luto. Pelo menos, assim acontece com a mulher cuja ligação ao rapaz começa a tomar proporções doentias, a dependência emocional na vertigem da psicose. Todos a olham como louca, mas o pequeno Sean persiste, atiçando as labaredas da mentira que Anna conta a si mesma, como que numa busca de reconforto além das fronteiras da razão. Sentimos a sua fragilidade em cada fotograma de gelo e âmbar, como se a noiva fosse, ela mesma, um espectro entre a realidade dos vivos e o mundo dos mortos.

Com uma delicadeza que se sente brutal, em jeito agridoce que sabe a ácido na língua, Glazer disseca a psique de Anna enquanto mantém a audiência a considerável distância. Há um lado clínico a esta abordagem, mas, ao mesmo tempo, a possibilidade de alienação mantém o mistério. Até quando o enigma de quem é este jovem se desvenda, continua em cena outro puzzle por resolver cuja irresolução atrai o espetador como o íman atrai o metal. É esse segredo que jamais será contado, sua articulação tão fora do alcance como o significado da vida. É a verdade da alma humana, a galáxia escondida no coração de cada um.

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No caso de Anna e Sean, talvez sejam buracos negros que tanto se puxam como consomem, a luz sumindo no cosmos sem fundo do seu desejo. Por muito que a câmara se aproxime de Kidman, a distância metafórica mantém-se em conjunção com essa força gravitacional. Podemos estudar cada poro, mas seu semblante continuará a devorar a luz de toda a estrela e todo o saber, todo o palpite e resposta. Não conhecemos Anna apesar de lhe mirarmos o espírito. Ela é uma porta cerrada, trancada, sua superfície transparente e intransponível em igual medida. Perdoem-nos estas palavras floreadas, só que “Birth” merece. Anna merece, Kidman e Glazer também.

A colaboração destes artistas resulta em experiência única e inconfundível, quase inexplicável. Como poderemos contar por palavras o efeito visceral que uma reação silenciosa à ópera tem no contexto do filme. Ou talvez seja aquele casamento na praia cinzenta no fim, lágrimas jorrando e gritos saídos de uma profundidade bíblica. Quiçá nas mãos de outros cineastas a casa de cartas caísse, mas estes mestres mantêm o rigor em forma plena, absoluta, tratando suas ideias audazes com frieza, com a seriedade de um funeral. Há tantos elementos que contribuem para esta perfeição, esse fascínio, que a crítica se poderia esticar sem fim. Pensemos em Anne Heche, qual balde de água fria sobre a história, ou a cenografia marmórea que faz do espaço doméstico um mausoléu. Ao altar de “Birth” fazemos esta promessa de amor eterno, a devoção do cinéfilo levada aos mesmos extremos de loucura que afetam a estranha protagonista. Somos todos Anna, sob o feitiço cruel de Glazer. Como ela, não queremos escapar ao estupor, pois no pavor alcançamos o êxtase.

“Birth – O Mistério” encontra-se disponível na HBO Max.

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