"Os Fantasmas de Ismael" | © Why Not Productions

Cannes em Casa | Os Fantasmas de Ismael

O mais recente filme de Arnaud Desplechin já foi exibido no Festival de Cannes. Infelizmente, a reação da crítica internacional para com “Frère et soeur” tem sido ardentemente negativa. Muitos o apontam como o pior título da Competição Principal até agora. Enquanto se ponderam estas notícias, que tal dar uma olhadela ao trabalho passado do cineasta francês? Em 2017, a sua primeira colaboração com Marion Cotillard, “Os Fantasmas de Ismael,” foi selecionado como filme de abertura do festival.

Poucos são os filmes que incluem uma nota bibliográfica, mas também poucos são os cineastas que se podem comparar a Arnaud Desplechin. Ao longo da sua carreira, este realizador francês tem vindo a aperfeiçoar um cinema romancista que, apesar de ser texto original, sente-se baseado em algum livro perdido. Por outras palavras, ver um filme de Desplechin trespassa a mesma sensação que ler um romance. Há muitas razões para tal, indo desde estruturações literárias a questões de subjetividade alternada, divisões capitulares e mais.

Dito isto e não obstante as suas referências livrescas, “Os Fantasmas de Ismael” é um animal diferente. Certamente temos que considerar a bibliografia cheia de nomes como Lacan, Mailler, Roth, Rilke e até um cheirinho de Noyce na escolha de alguns nomes. Contudo, também existem múltiplas referências ao foro da música, notas de Bob Dylan aqui e ali, assim como muitos piscares de olho em jeito cinéfilo. Desses apontamentos, Hitchcock assume-se como principal influência, especialmente no que se refere a uma figura cujo arco relembra “A Mulher Que Viveu Duas Vezes.”

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© Why Not Productions

Só que tal homenagem aos mestres do cinema não é incomum no currículo de Desplechin, estando patente noutras obras que replicam aquela qualidade do romance. Mais do que muitos filmes do autor, há uma natureza intrinsecamente cinematográfica neste exercício, nem que seja pelo facto de o seu protagonista ser um cineasta. Além disso, “Os Fantasmas de Ismael” usa o trabalho de Lacan e companhia como fonte de inspiração sem entrar em diálogo direto com as suas ideias. Em contraste, esta fita fantasmagórica existe em perpétua conversa com filmes específicos.

Falamos dos trabalhos passados de Desplechin, aqui reconfigurados em gestos de folia metatextual. “Três Recordações da Minha Juventude” e, por conseguinte, “Comment je me suis disputé… (ma vie sexuelle)” são os principais interlocutores, mas sente-se que toda a obra deste homem existe, de alguma forma, condensada nestes “Fantasmas de Ismael.” Se estivesse o francês no fim da carreira, chamaríamos ao feito uma tentativa testamental, mas, como esse não é o caso, encaramos o filme como um ponto de situação, um olhar retrospetivo, um convite à reflexão.

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Ou, em alternativa, estamos perante uma representação dramática do dilema do artista – um criativo que se perde na própria mente. Seguimos o Ismael titular, um realizador estagnado num momento de impasse, que presentemente trabalha num filme sobre espionagem. Supostamente, a figura de Ivan que existe enquanto protagonista desse projeto, baseia-se no irmão de Ismael. Contudo, vamos descobrindo que a personagem pode estar mais próxima de ser um alter-ego para o seu autor. Isso só se torna mais flagrante – e mais confuso – quando outro filme dentro do filme floresce, meio-formado, da imaginação de Ismael.

Não há resoluções para esses detalhes, nem para mais nenhum mistério do enredo. Outra figura que oscila entre a independência e a condição de reflexo é o mentor de Ismael, um sobrevivente do Holocausto que dá pelo nome de Henri Bloom. Será ele uma invenção, um homem de carne e osso, uma face de Ismael entre muitas ou algo ainda mais indecifrável? Com isso dito, a ação principal de “Os Fantasmas de Ismael” não se centra em nenhum desses homens que, de facto, podem ser só um. Ao invés, a narrativa constrói sua linha principal através de duas mulheres, amantes do artista.

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© Why Not Productions

Enquanto tenta exorcizar os seus demónios através dos guiões, Ismael passa os dias junto à praia na companhia de Sylvia, sua adorada namorada e fiel conselheira nestas agonias do processo criativo. De todas as figuras da fita, ela é a que nos parece mais real, independentemente dos jogos em que o texto a envolve. Num paradigma onde a fantasia e a banalidade se justapõem e aglutinam a belo prazer, ela é o porto salvo face à tempestade. Pelo contrário, Carlotta é o impossível materializado, um sonho do passado e a personagem que mais se pode identificar com os fantasmas do título.

Interpretada por Marion Cotillard, ela é a esposa do realizador, desaparecida há 21 anos. Há muito dada como morta, sua reaparição desestabiliza um homem já por si desorientado, pondo em risco a única relação fixa na sua vida. Ao mesmo tempo, tão ameaçada quanto fascinada, Sylvia ultrapassa o ciúme para se aproximar de Carlotta, como que personificando um filme que voluntariamente se deixa levar pelo mistério da defunta viva. Aqui, o apelo a Hitchcock torna-se claro, mas Cotillard não é nenhuma Kim Novak nos nevoeiros de São Francisco.

Longe de se mostrar enquanto puzzle em forme de mulher, a atriz escolhe o caminho da presença casual, complicando ainda mais o texto com as escolhas de performance. A certa altura, ela rouba protagonismo a Ismael, só que o filme nunca é dela. Noutras ocasiões, é como se o texto atirasse flashbacks para cima da mulher, como que na tentativa de a enterrar, de a esquecer. Em segunda análise, parece-nos que “Os Fantasmas de Ismael” não foge assim tanto à regra no que se refere ao cinema literário de Desplechin. Não é que a obra se sinta mais cinematográfica que as outras. Acontece é que, se fosse um livro, seria daqueles que todos dizem ser impossíveis de filmar, demasiado complicados e abstratos para alguma vez sobreviverem no grande ecrã.

Podes ver “Os Fantasmas de Ismael,” alugando o filme na MEO.

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