"Sono de Inverno" | © NBC Film

Cannes em Casa | Sono de Inverno (2014)

O novo filme de Nuri Bilge Ceylan está a ser bem-recebido pela crítica internacional. “About Dry Grasses” é o mais recente trabalho do realizador turco e o seu sétimo título a competir pela Palme d’Or no Festival de Cannes. Em 2014, o cineasta conquistou essa tão desejada honra com “Sono de Inverno,” também conhecido como “Winter Sleep” e “Kis Uykusu” no original. Para esta programação paralela, este querido festival caseiro que é o Cannes em Casa, decidimos revistar a obra. É o melhor que podemos fazer aqui em Portugal, esperando ansiosamente para que o novo filme chegue aos nossos cinemas nacionais.

Ao longo das últimas três décadas, Nuri Bilge Ceylan emergiu e confirmou-se como um dos grandes cineastas turcos. Na conjetura atual, seria justo dizer que ele é o cineasta turco, seus filmes sempre presentes nos grandes festivais com já sete títulos a concurso na Croisette. Este percurso cheio de glória teve o seu início nos anos 90, com uma curta-metragem muda onde Ceylan expôs os seus muitos talentos fotográficos. Quando se consideram suas obras mais recentes, exemplos de cinema feito sob a alçada da literatura, o silêncio da estreia parece-nos especialmente marcante. Logo esse trabalho, “Koza” passou em Cannes e, passados somente quatro anos, já Ceylan apresentava a sua segunda longa na Berlinale.

Seguindo a filmografia do autor, segue-se a linha clara da sua evolução enquanto contador de histórias. “Uzak – Longínquo” foi a longa-metragem de Ceylan que primeiro competiu na secção principal do maior festival do mundo, vencendo o prémio para Melhor Ator no fim do evento. Apesar dessa honra, trata-se de outro filme dominado pelos silêncios, com a referência gozona a Tarkovsky, dizendo-nos tudo o que precisamos de saber sobre os ritmos glaciares e rigor formal do turco. Essa foi a última vez que Ceylan agiu como seu diretor de fotografia.

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© NBC Film

“Climas” foi seu último exercício enquanto ator, desenhando uma narrativa de amor tóxico ao lado da sua esposa feita coprotagonista e coargumentista. A partir daí o silêncio absoluto começou a drenar do cinema de Nuri Bilge Ceylan, substituído por uma ênfase cada vez maior na cena de diálogo como principal motivador do projeto. Esta nova vertente chega ao seu píncaro em 2014, com a sétima longa-metragem do realizador e sua maior vitória de sempre – a Palme d’Or. “Sono de Inverno” tanto celebra o poder da palavra porque se trata, em jeito relativo, de uma adaptação.

Os escritos de Anton Tchekhov – “A Minha Mulher” e partes d’”Os Irmãos Karamazov” –  foram o ponto de partida para Nuri Bilge e Ebru Ceylan, modernizando os seus textos e articulando consigo uma história tão ligada à paisagem turca como à literatura russa. Aqui se considera o fado de Aydin, um antigo ator que, na sua meia-idade, se tornou proprietário de um hotel algures na região montanhosa da Capadócia, na Anatólia. Qual senhor feudal, ele vive num templo de privilégio em relação ao restante povo, fechando-se na propriedade, incidindo a sua atenção nos estudos com esperança de no futuro elaborar um livro.

Um dia, quando passa de carro pela aldeia vizinha, alguém atira uma pedra contra o para-brisas da viatura. O culpado é Ilyas, o filho de Ismael cujas dívidas para com Aydin têm levado à ruína. Não só o antigo ator mantém o hotel nas montanhas, como cobra renda à maioria das pessoas empobrecidas nas redondezas. Existe um estilhaçar que transcendo o vidro partido, sendo o quebrar de um ego há muito insuflado, o ultraje do orgulho ferido de um senhor a quem a vassalagem foi negada. A câmara de Ceylan tudo isto captura em longos takes, gestos pacientes que vão descascando a imagem de Aydin, para consigo e para com os demais.

Contudo, é a prestação de Haluk Bilginer que mais contribui para esta autópsia do sujeito vivo. Louva-se o trabalho do ator, mas também se aplaudem os esforços das suas mais frequentes parceiras de cena – Melisa Sözen como Nihal, a jovem esposa, e Demet Akbag como Necla, a irmã do hoteleiro e senhorio. É entre estes três vetores humanos que os melhores momentos do filme se estabelecem, tensões antigas vindo ao de cima à medida que o caso da pedra atirada se torna em todo um drama. Em certa medida, Ceylan e seus atores constroem “Sono de Inverno” em estilo de avalanche.

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© NBC Film

O ato inicial é uma singela bola de neve crescendo gradualmente até que é um tsunami branco, abatendo-se sobre todas as personagens. Interpretadas magistralmente, essas figuras são os arquitetos da sua infelicidade, os mestres da miséria própria quer se apercebam disso ou não. Vê-los tentar contornar essa realidade é um jogo de observação cortante, os mistérios da condição desnudando-se para nosso prazer – ou será para nosso horror? É claro que, no meio deste purgatório, Aydin é e sempre será o maior demónio em residência. Nesse sentido, “Sono de Inverno” perpetua um discurso transversal a toda a obra do seu autor.

Referimo-nos a uma crítica implícita sobre autoritarismo masculino e papéis de género definidos pelo tradicionalismo turco. Este anti-herói é o herdeiro do namorado asqueroso de “Climas,” dos patriarcas manipuladores de “Três Macacos” e o filho vingativo do mesmo filme. Ele segue-se aos irmãos perdidos de “Uzak,” aos polícias e criminosos de “Era Uma Vez na Anatólia.” Acima disso, contudo, será um estudo sobre a desconexão entre pessoas, até aquelas que se julgam amadas ou próximas do outro. No inverno rochoso, todos estão sozinhos, a relação entre o grandioso cenário natural e a figura humana ilustrando essa ideia em jeito épico, primordial, quase bíblico.

Poderás encontrar “Sono de Inverno” na plataforma da FILMIN Portugal. No mesmo sítio, deverás poder explorar outras obras de Nuri Bilge Ceylan.

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